quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Psicofísica Clássica II – Lei de Fechner

Como já descrito nos textos O que é Psicofísica? e Psicofísica Clássica I – Lei de Weber , Gustav Theodor Fechner (1801-1887) é uma figura central na Psicofísica. Ele escreveu o livro “Elemente der Psychophysik” (1860), no qual se encontra a fundamentação teórica e prática desta disciplina. Formulou a Lei de Weber e a Lei de Fechner com o intuito de encontrar uma equação que relacionasse a estimulação física e a experiência psíquica. Mas porque Fechner traçou este objetivo? O que o motivava? Por que traduzir esta relação em números? 

 
  Gustav Theodor Fechner (Imagem retirada do site: http://en.wikipedia.org/wiki/Gustav_Fechner)

Para responder a estas perguntas é necessário saber um pouco sobre sua vida. Fechner era um homem interessado em inúmeros campos do saber, tais como Filosofia, Fisiologia, Química e Física. Traduziu livros científicos do francês para o alemão e por seus experimentos sobre fenômenos elétricos foi nomeado professor de Física na Universidade de Leipzig em 1834. Entretanto sua carreira acadêmica durou apenas 5 anos por motivos de saúde. Ele encontrava-se bastante debilitado e estava com a visão muito prejudicada após realizar experimentos sobre percepção de cores, nos quais olhava para o sol através de vidros coloridos. Entre os anos de 1839 e 1851, Fechner manteve-se recluso e foi nessa época, mais precisamente na manhã do dia 22 de outubro de 1850, deitado em sua cama que lhe ocorreu a idéia de encontrar uma equação que descreveria a relação entre a estimulação física e as sensações.

A despeito de seus interesses científicos, não foram estes que o guiaram até esta “necessidade” de encontrar a matemática por detrás do mundo físico e do mundo psicológico. Fechner tinha um lado místico e espiritual muito forte e sentia-se impelido a lutar contra o Materialismo que imperava em sua época. Ele acreditava no Pan-Psiquismo, uma doutrina filosófica e religiosa que defende que toda a realidade tem uma natureza psíquica, assim toda matéria tem algum nível de consciência, seja uma planta ou uma pedra.

Dessa maneira, naquela manhã de outubro citada acima, ele concluiu que se pudesse descrever a relação entre o físico e o psicológico através de uma equação, seria um golpe fatal no dualismo mente-corpo e um argumento em favor do Pan-Psiquismo. Infelizmente, estas motivações atrapalharam um pouco a carreira científica de Fechner. Contudo, o seu rigor como experimentador e a matemática sólida empregada conferiram um valor inegável à sua obra, despertando o interesse de outros pesquisadores em seguir o caminho traçado no livro “Elemente der Psychophysik”, publicado uma década depois daquela histórica manhã.

Mas enfim, qual é a Lei de Fechner? Ele resolveu por integração uma equação diferencial, mas como não quero aborrecer o leitor com pormenores matemáticos, vamos à fórmula:


S = k.logE
Onde S é a sensação, K é a constante de Weber e E é a intensidade do estímulo físico.


Com esse logaritmo no meio, ficou difícil... Vamos simplificar. Para Fechner, é preciso aumentar a estimulação física em uma progressão geométrica para que a sensação correspondente cresça em uma progressão aritmética. Melhorou? Não? Então veja o gráfico abaixo, talvez ajude.


No gráfico, o eixo X representa a intensidade da estimulação física, a unidade de medida é arbitrária. Já no eixo Y vemos a sensação representada pela diferença apenas perceptível (d.a.p.). Se você não sabe o que é d.a.p, dê uma olhada aqui.

Note que à medida que aumentamos o valor da estimulação, esta não produz grandes mudanças na sensação. Isso significa que somos mais sensíveis para perceber alterações em estímulos de baixa intensidade. Veja também que a distância entre as linhas azuis horizontais é sempre a mesma (progressão aritmética), por outro lado a distância entre as linhas verticais azuis aumenta gradativamente (progressão geométrica). 

Um exemplo com números para clarificar. Vamos pensar no volume de uma televisão. Digamos que o volume esteja no valor 5 e que para perceber uma mudança neste volume (isto é, uma d.a.p.) seja necessário aumentá-lo para 10. No entanto, para perceber uma nova alteração no volume (outra d.a.p) você tenha que colocá-lo em 20 e depois em 40 e assim por diante. Veja que a sensação (em d.a.p.) cresce como uma progressão aritmética (1, 2, 3, 4, 5 ...), enquanto que a estimulação física aumenta em progressão geométrica (5, 10, 20, 40, 80...).

Mostramos um aumento da estimulação física em uma unidade arbitrária e é claro que esse é um exemplo grosseiro e simplificado com o objetivo de apresentar a Lei de Fechner. Contudo a lógica é mesma, independente da unidade de medida da estimulação física (m, kg, cd/m2, Hz, etc.), de acordo com a modalidade sensorial em questão. 

Já vimos o conceito de Limiar Diferencial. Neste ponto, é importante dizer que Fechner também estabeleceu o conceito de Limiar Absoluto, que é a magnitude física de um estímulo requerida para que ele seja percebido, ou seja, abaixo deste valor, este não é detectado. 

Assim, a Lei de Fechner tinha um interesse especial porque se a magnitude do estímulo (E) tem o valor do Limiar Absoluto, a sensação (S) é nula. Isso nos leva a pensar sobre a existência de “sensações negativas”, quando E é menor que o Limiar Absoluto, as chamadas percepções subliminares. Neste sentido, o Limiar Absoluto poderia ser considerado uma porta de acesso à consciência! A percepção subliminar e a consciência serão assuntos de textos futuros.

Ao formular esta lei, Fechner alcançou seu objetivo de traduzir matematicamente a relação entre sensação e estimulação física. Ademais, dá um passo fundamental para o posterior reconhecimento da Psicologia como ciência ao superar dois dos vetos kantianos1.

Você deve estar se perguntando: As idéias de Fechner foram ampla e facilmente aceitas? A resposta é não! Então há críticas? Com certeza!

Em primeiro lugar e por razões óbvias, a mesma crítica à Lei de Weber, a qual era válida apenas para os valores médios de estimulação, também se aplica à Lei de Fechner. Há dúvidas também sobre a legitimidade da integração matemática realizada por ele.

Além disso, há outras críticas que se referem a alguns postulados de Fechner. Ele considerava que uma sensação forte era a soma de sensações fracas, o que a Gestalt provou não ser verdadeiro (o todo não é a soma das partes). Também contrário às suas idéias, observou-se que as diferenças apenas perceptíveis (d.a.p.) não constituem unidades iguais, pois variam entre observadores e, até mesmo, para um mesmo observador. E para terminar, o Limiar Absoluto não tem um valor fixo como ele pensava. Sabe-se que este valor oscila por razões fisiológicas e psicológicas (adaptação, fadiga, atenção e outros). 

Enfim, podemos dizer que a Lei de Fechner foi aplicada com sucesso a diversos problemas resultando, por exemplo, nas medidas sonoras de bel e decibel. Por outro lado, ela não se mostrou adequada quando aplicada a outros problemas. De qualquer maneira, não se pode negar que Fechner aportou muitas e importantes contribuições para a Psicologia e, claro, para a Psicofísica, o que lhe garante um lugar definitivo na história. 

Quer baixar o texto? Clique aqui.


1 – Essa é uma discussão epistemológica e filosófica sobre o status científico da Psicologia. Kant acreditava que, para ser considerada uma ciência, a Psicologia deveria superar alguns vetos, a saber:
I) Definir o seu elemento de estudo, como a química por exemplo, para efetuar análises e sínteses. Este veto foi superado pela Teoria das energias nervosas específicas de Johannes Müller, formulada em 1826.
II) Que o estudo deste elemento seja objetivo, separando sujeito e objeto. Em 1860, Hermann von Helmholtz elaborou a teoria das inferências inconscientes e o método da introspecção experimental. Fechner também supera esse veto com seus estudos.
III) Que exista uma matemática subjacente ao fenômeno estudado. Este último veto é superado pela formulação da Lei de Fechner.



Leonardo Gomes Bernardino
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Gostou? Quer ler mais? 
  • Gescheider, G. (1997). Psychophysics: the fundamentals (3rd ed.). Lawrence Erlbaum Associates.
  • Schiffman, H. R. (2005) Psicofísica. In: H. R. Schiffman, Sensação e Percepção (pp. 17-33). Rio de Janeiro: LTC.

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Membro fantasma

Quão forte precisa ser uma ilusão para afetar nossa mente? Atualmente vivemos a febre do cinema 3D e pagamos caro para termos momentos de ilusão. Mas será que são necessários recursos tão sofisticados para termos uma ilusão que afete nossa mente? E estas ilusões servem apenas para nosso lazer?

Não. Você alguma vez já ouviu falar de membro-fantasma?

É um fenômeno bastante peculiar, que é relatado desde o século XVI. Trata-se da percepção continuada que algumas pessoas têm de seus membros que foram amputados. Ou seja, estes membros não estão mais ligados ao corpo, mas mesmo assim parecem que ainda estão. Por exemplo, alguém pode perder uma perna e continuar a senti-la. Às vezes, além de ter a sensação da existência da perna, a pessoa ainda sente dores nesta perna que não existe mais!


Figura 1. Membro fantasma.  A mão foi amputada do corpo, mas mesmo assim ainda ocorre a percepção sensorial de sua existência. Fonte: Phantom Mirror



Isto ocorre porque corpo é constantemente bombardeado por estimulações sensoriais que nos informam sobre as condições do ambiente externo e interno. Cada órgão dos nossos sentidos é preparado para receber, interpretar e transformar estas estimulações em impulsos nervosos. Estes chegarão até o cérebro e lá serão processados. A partir disto teremos consciência do que se passa no ambiente e poderemos agir de forma adequada.

Estas informações sensoriais do corpo são enviadas e processadas num mapa sensorial no nosso cérebro. Este é representado por um homúnculo sensorial. Quanto mais importante (ou utilizada) é uma parte do corpo, maior é sua representação no cérebro (ver Figura 2).


Figura 2. Homúnculo sensorial. Note a grande diferença na representação do polegar em relação ao tronco. Isto ocorre porque o polegar necessita de maior sensibilidade que o tronco para desenvolver bem suas tarefas. Fonte: Wikipedia


Para entender do que falamos, olhe para sua mão. Leia isto e tente fazer depois: feche os olhos e tente imaginar algum objeto muito pesado em cima dela. Este objeto faz pressão e o peso dele aumenta aos poucos. Em determinado momento você sentirá dor. Este processo se auto-alimenta, com a sensação de maior peso na sua mão causando o aumento da sensação de dor. Para acabar com isto bastará você tirar o peso de cima da sua mão.

Agora imagine que sua mão não está mais presente ao seu corpo. Como você controlaria isto?

Algumas pessoas perderam a mão em situações como esta, ou, por exemplo, com a mão fechada. A dor fantasma pode ocorrer por falha nesse sistema de retroalimentação. Imagine que, numa situação como a do exemplo acima, uma pessoa perca a mão. O cérebro enviaria sinais para a área amputada e não receberia feedback. Ou seja, a informação de  quão forte é a sensação de peso na mão não chega ao cérebro. Dessa maneira, nosso sistema nervoso segue processando que há um objeto pesado sobre a mão e ao não receber informação se esse peso foi ou não tirado de lá, a dor continua. Enfim, é uma dor construída pela sua mente para interpretar esta situação.

Interessante nestes casos é que se antes da amputação o membro já estava paralisado, a pessoa sente-o paralisado após remoção. Se o membro se movimentava, sente-o movimentar. E se este membro estava doloroso por algum motivo, após a amputação ele sentirá ainda mais dor quando ele tiver a sensação fantasma deste membro se movendo.

Sentir dor é algo desagradável. Imagine-se sentindo dor constantemente em alguma parte de seu corpo. Agora pense que esta parte não existe mais, e mesmo assim ainda dói! Este problema foi encarado de diversas maneiras. Um cientista chamado Vilayanur S. Ramachandran tentou resolver este problema com um equipamento que cria um fenômeno ilusório bastante interessante. Trata-se de uma caixa de espelho (Mirror Box) em que há feedback visual para o movimento do membro ausente (ver figura abaixo), enganando-se assim o cérebro.


Figura 3. A caixa de espelho utilizada. Ela é formada por dois compartimentos separados por um espelho vertical. O individuo coloca sua mão real em um deles e se posiciona como se estivesse com as duas mãos na caixa. O espelho cria a ilusão que a mão fantasma ressurge, ou ressuscita (nas palavras de Ramachandran). Com isso a pessoa pode ilusoriamente mover suas duas mãos. Fontes: esquerda - Artigo Ramachandram (direto para pdf) e direita: Mirror Box 


Ramachandran testou este equipamento em 10 pessoas que tiveram suas mãos amputadas. Cada paciente observou o reflexo de sua mão intacta no espelho e o equipamento causava a ilusão que o paciente tinha novamente as duas mãos. Foi-lhes pedido que realizassem movimentos com “as mãos” durante 15 minutos diários, por 3 semanas. 6 pacientes ao olharem o reflexo no espelho conseguiram sentir seu membro fantasma se movendo. Mas isto não ocorria com os olhos fechados, atestando que o efeito era devido ao equipamento. 4 pacientes ao abrirem suas mãos fantasmas sentiram alivio da dor (pode ter ocorrido pelos mecanismos explicados no exemplo do peso em cima da mão). Ainda, ao serem tocados na mão real, 3 pacientes sentiram o toque também na mão fantasma! Uma possível explicação é uma ativação em ambos os hemisférios, que é muito fraca nos não amputados, mas nos indivíduos com membros amputados ela se torna forte devido a ausência de estimulação constante.

Além do que foi relatado acima, Ramachandran também fez outros testes. Ele pedia que os pacientes fechassem seus olhos e dissessem onde ele os tocava com um cotonete. Quando tocado no lado do corpo sem o membro amputado, o paciente sentia o toque apenas a região tocada pelo cotonete. Porém, ao estimular a face do lado do membro amputado, alguns pacientes relataram que também seus membros fantasmas estavam sendo tocados.


Figura 4. Esquema da relação topográfica entre toque no braço/ombro e sua relação com a face. Ao ser tocado na face o participante relatava sentir sua mão fantasma. Esta migração de neurônios  foi confirmada através de MEG – magnetoencefalografia (uma de várias técnicas de imageamento cerebral). Fonte Phantom face 


Por que isso acontece?

Quando uma parte do corpo é perdida, ocorre uma invasão neuronal de áreas vizinhas no homúnculo sensorial (Figura 2). Como a região responsável pela face está bem próxima da região da mão, há uma reorganização (ou “remapeamento”) sensorial, com os neurônios que antes representavam a mão agora são recrutados pela face. Esta hipótese foi confirmada através de ressonância magnética. Foi observado que quando a face do lado amputado era estimulada ocorria uma ativação da área facial e também da área correspondente à mão. O mesmo não acontecia do outro lado do corpo.


Figura 5. Figura esquemática da migração neuronal. Na figura A nota-se que "a mão" está presente. Após a amputação, a área da face avança sobre a região responsável pela mão, fazendo um “remapeamento”. Fonte: Homunculus


Em suma, a pesquisa mostrou-se válida para tratar alguns pacientes e suas dores. Também lançou algumas bases para se entender de forma mais precisa este fenômeno intrigante. Ainda, mostrou que há plasticidade neuronal mesmo no cérebro adulto, hoje pode parecer banal falar isto, mas o artigo foi publicado originalmente em 1996.

A simplicidade da técnica mostra que também é possível nos iludir com coisas simples, e melhor, isto pode nos trazer benefícios.

Quer baixar o texto? Clique aqui.

Bruno Marinho de Sousa
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Para entender mais do assunto:

Ramachandran, V. S. & Rogers-Ramachandran, D. Synaesthesia in Phantom Limbs Induced with Mirrors. Proceedings: Biological Sciences, 263, No. 1369, pp 377-386, 1996. (Artigo em inglês, trata-se da pesquisa mencionada no texto).

Ramachandran, V. S. & Hirstein, W. The perception of phantom limbs The D. O. Hebb lecture. Brain, 121, pp 1603-1630, 1998. (Artigo em ingles, também mencionado no texto).

Demidoff, A. O.; Pachecoa, F. G.; Sholl-Franco, A. Membro-fantasma: o que os olhos não vêem, o cérebro sente. Ciências & Cognição, 12, pp 234-239, 2007. (Texto em português, os autores fazem um apanhado geral do assunto. O texto é de fácil acesso).

No site youtube é possível encontrar diversos vídeos com a demonstração da técnica com o Mirror Box. Abaixo temos um exemplo para a perna fantasma.