quinta-feira, 23 de junho de 2011

Da minha janela eu vejo... Uma grade de Hermann

Um exemplo de como as ilusões visuais podem estar presentes em nosso dia-a-dia


No texto “Aos gregos o mar era violeta”, discutimos como a cultura constrói nossa realidade e como vemos o mundo através de lentes pessoais. Para além dos aspectos sensoriais, cada um constrói um modelo de mundo segundo suas convicções, crenças, experiências e filosofia. E com o cientista não é diferente. Temos a mania de ler e interpretar o cotidiano a partir de modelos físicos, biológicos, sociais, matemáticos...


Um bom exemplo disto foi o que aconteceu comigo nesta semana. Fui tomar uma xícara de café na sacada do meu apartamento em Ribeirão Preto e o que vejo? Uma grade de Hermann! Literalmente uma grade, já que se tratava do portão da casa do vizinho da frente (Figura 1). Mas o que é e qual o interesse disso para a percepção?

Figura 1: Padrão similar ao da grade de Hermann no portão de entrada.

A grade de Hermann é uma ilusão de ótica que foi relatada pelo fisiologista alemão Ludimar Hermann em 1870. Esta ilusão é caracterizada pelo aparecimento de pontos cinza “fantasmas” que aparecem nas intersecções claras sobre um fundo escuro. Uma variante mais poderosa desta ilusão é a da grelha cintilante, que foi descoberta pelo professor de matemática, também alemão, Elke Lingelbach em 1994. 
 
Figura 2: Ilustração das ilusões visuais grade de Hermann (à esquerda) e grelha cintilante (à direita). Imagens retiradas dos sites: http://www.zevariedades.com/curiosidades/4567/ e http://www.daviddarling.info/encyclopedia/H/Hermann_grid_illusion.html


A explicação clássica para o efeito da grade de Hermann está relacionada ao efeito de inibição lateral das células ganglionares da retina. Cada uma destas células possui um campo receptivo. Este é uma área da retina sobre a qual o estímulo luminoso é capaz de ativar esta célula e que é formado por fotorreceptores (cones e bastonetes). Ademais, os campos receptivos das células ganglionares são do tipo centro-periferia e circulares. A magnitude da resposta destes campos (freqüência de disparos) depende da região em que ele for estimulado. Os centros podem ser on ou off. Se uma célula ganglionar com campo receptivo de centro on, por exemplo, recebe mais luz que a periferia, ela responde com maior intensidade. Se, ao contrário, a periferia recebe luz e o centro não, quase não acontecem disparos de potenciais de ação. O efeito se inverte para células com campos com centro off. Tanto células on quanto as off, respondem de maneira intermediária quando centro e periferia são estimulados uniformemente.


Vamos assumir então que existem células ganglionares de centro on e periferia off  que têm seus campos receptivos nas áreas claras da grade. Note na figura 3 que quando os campos receptivos se encontram no cruzamento das faixas claras, uma maior parte da periferia está sendo iluminada em relação aos trechos claros fora de cruzamentos. Sendo assim, a resposta neural nos cruzamentos é menor do que no restante das faixas claras. Isto resulta em menor luminosidade percebida nas esquinas da grade. Daí surgem os pontos cinza “fantasmas”.

Figura 3: Representação esquemática do funcionamento das células ganglionares da retina na área foveal (direita) e na visão periférica (esquerda). Imagem retirada do site: http://www.michaelbach.de/ot/lum_herGrid/index.html
Note também que os pontos cinza não aparecem quando olhamos diretamente para eles ao focar algum cruzamento na grade. Quando prestamos atenção em algum estímulo, este fica centralizado no campo visual. A fóvea é a região da retina que processa esta área e seus fotorreceptores estão ligados a células ganglionares que têm um campo receptivo menor. Sendo assim, a estimulação destas células é a mesma tanto nos cruzamentos quanto fora deles, o que resulta numa mesma intensidade de luz percebida nestes dois locais.


Embora esta explicação seja atraente, repouse sob dados empíricos e seja amplamente aceita, ela foi criticada ao longo do tempo por dar uma explicação muito simplificada. Isto porque mecanismos corticais participam deste efeito ilusório. Peter Schiller e Christina Carvey, do instituto de tecnologia de Massachusetts, publicaram em 2005 um trabalho de revisão sobre a grade de Hermann. Neste, eles argumentam que a teoria das células ganglionares é insustentável para explicar os pontos cinza “fantasmas”. Além disso, apresentam idéias alternativas que possibilitam explicar o fenômeno e uma nova teoria.


Esta nova teoria afirma que a percepção de luminosidade é levada a cabo por neurônios da área visual primária do córtex que também possuem um subcampo receptivo on ou off e que recebem inputs de células ganglionares da retina. Estas células, chamadas de S1, além de serem sensíveis ao contraste, são responsivas a orientações específicas: existem neurônios vertical e horizontalmente orientados. Sendo assim, campos receptivos que cobrem áreas de intersecções não possuem bordas na horizontal e nem na vertical, o que produz um decaimento da resposta neuronal. A percepção de luminosidade no cruzamento da grade é feito somente por células que não são ativadas por orientações específicas. Esta interpretação provê uma explicação do porquê o efeito da ilusão diminui quando inclinamos a cabeça cerca de 45°. O fato dos campos receptivos dos neurônios S1 serem de tamanhos diferentes explica porque enxergamos os pontos cinza mesmo variando o tamanho da grade.
 
Figura 4: Modelo esquemático das células S1. Elas mantém o padrão centro-periferia on ou off e abrangem uma ampla faixa de tamanho (a) e são verticalmente ou horizontalmente orientadas (b). Imagem retirada do artigo de Schiller e Carvey (2005).

O estudo desta ilusão ajuda a compreender mecanismos de funcionamento do sistema visual humano desde 1960. Minha vontade em relatar uma ilusão clássica do campo da percepção reside no fato de que ilusões perceptivas não são somente criadas e manipuladas em laboratórios por pesquisadores. Nossos sentidos são enganados por padrões e fenômenos encontrados no cotidiano, sejam eles naturais ou construídos por nós.

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Rui de Moraes Júnior


Para saber mais:

  • De Lafuente V, Ruiz O. (2004). The orientation dependence of the Hermann grid illusion. Experimental Brain Research, 154 255-260. 
  • Geier J, Sera L, Bernath L. (2004). Stopping the Hermann grid illusion by simple sine distortion. Perception, 33 Supplement, 53. 
  • Schiller P H, Carvey C E. (2005). The Hermann grid illusion revisited. Perception, 34(11) 1375- 1397. 
  • Westheimer G. (2004). Center-surround antagonism in spatial vision: retinal or cortical locus? Vision Research, 44 2457-2465.