segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Psicofísica Moderna II - Teoria de Detecção de Sinal (parte I)

Os estudos pioneiros da Psicofísica, por meio dos métodos clássicos, vislumbravam principalmente a obtenção do Limiar Diferencial e do Limiar Absoluto. O cálculo deste último chamava muito a atenção de Gustav Theodor Fechner (1801-1887), pois “poderia ser considerado uma porta de acesso à consciência!”, como foi descrito aqui.

Vamos retomar seu conceito. O limiar absoluto é a intensidade mínima de um estímulo físico a partir do qual ele será detectado. Esta definição implica que valores abaixo deste limiar não serão percebidos e aqueles com magnitude acima serão detectados. Esta idéia carrega consigo a noção de que a experiência perceptiva seria descontínua e funcionaria por uma lei de tudo ou nada. Ou percebo ou não percebo. Neste sentido, os limiares poderiam ser considerados como uma “barreira neural” (ver gráfico à esquerda).
Entretanto, esta idéia começou a ser questionada a partir de evidências advindas de diversos estudos. O limite entre a detecção e a não detecção de um estímulo não seria rígido. Ao contrário, há uma faixa de intensidades dentro da qual às vezes o estimulo é percebido e em outras não. Assim, ocorreria uma transição suave e de maneira contínua (ver gráfico à direita). 


Funções psicométricas distintas, de acordo com a idéia de limiar subjacente a elas. À esquerda, observamos uma função psicométrica com a forma de um degrau de escada, a qual é condizente com a idéia de "barreira neural". Neste exemplo, a intensidade 4 é o limiar absoluto, isto é, valores abaixo de 4 nunca são detectados e valores acima de 4 sempre são detectados. À direita, vemos uma típica curva psicométrica encontrada em experimentos psicofísicos. A transição não é abrupta e o limiar absoluto é definido como a intensidade do estímulo que é detectado em 50% das vezes.


A partir deste pressuposto de que o limiar não é fixo, foram desenvolvidas novas maneiras de investigar a detecção e discriminação de estímulos sem valer-se única e exclusivamente do conceito de limiar. Dentre estas, destaca-se a Teoria de Detecção de Sinal (TDS).

A TDS é uma teoria estatística que tem suas raízes na Teoria Estatística de Decisão, desenvolvida por Abraham Wald (1902-1950) em 1950. Esta teoria fornece modelos de decisão para lidar com fontes de evidência complexas e de grande incerteza. Além disso, se você já teve algum contato com estatística e os testes de hipóteses (teste t e ANOVA, por exemplo), é interessante saber que a teoria de Wald é uma das abordagens utilizadas para se decidir entre rejeitar ou aceitar uma hipótese.

Inicialmente, desenvolveu-se a TDS para resolver problemas relacionados à tecnologia e à comunicação (rádio, telefone, radar). Na década de 50 do século passado, ela foi adaptada e aplicada à Psicologia por pesquisadores da Universidade de Michigan nos Estados Unidos. Em 1966, é publicado o clássico livro de David M. Green e John A. Sweets, chamado “Signal Detection Theory and Psychophysics”, o qual situa e reconhece a importância da TDS dentro da psicofísica.

A TDS considera que há dois componentes, os quais podem ser medidos separadamente, e que definirão a resposta do observador frente a um estímulo: 1) habilidade de detecção ou sensibilidade e 2) processo de decisão. O primeiro não é novidade nenhuma, pois o arcabouço teórico-metodológico da psicofísica clássica está voltado para investigar esta questão. O segundo componente é que diferencia a TDS das abordagens clássicas.

Desse modo, a TDS reconhece que a detecção de um estímulo depende também de fatores não-sensoriais, que afetam o critério de decisão do observador. Por isso, um estímulo de intensidade constante apresentado repetidas vezes, às vezes pode ser detectado e em outras vezes não. Essa flutuação pode ocorrer ou por alguma alteração na sensibilidade do observador ou por mudanças em algum fator não-sensorial (atenção, motivação, expectativa). Podemos concluir, portanto, que a TDS considera que os observadores não apenas percebem, mas também tomam decisões.

Podemos dizer que a TDS não é um modelo de processamento sensorial e sim um modelo geral de decisão relativo a uma evidência. Para entender isso melhor, vamos a um exemplo. Imagine que estamos interessados em investigar a detecção de um ponto luminoso. Na TDS, este estímulo a ser detectado ou discriminado é chamado sinal (signal, em inglês). Para isso, utilizaremos uma tarefa sim/não. Neste tipo de tarefa, em algumas tentativas o ponto luminoso (sinal) será apresentado e em outras não. O observador deve indicar em cada tentativa se o sinal foi apresentado (sim) ou não.

Mesmo quando o sinal não está presente, ainda assim há a probabilidade de respondermos “sim”. Ou seja, há uma incerteza associada à sua sensibilidade perceptiva, que reflete em seu processo de decisão. Para simplificar, vamos exemplificar com uma situação pela qual você já deve ter passado. Ao esperar uma ligação importante, às vezes acreditamos ter ouvido o telefone tocar, quando na verdade ninguém nos ligou ainda. Esta incerteza ou variabilidade associada ao processo estatístico de decisão é chamada de ruído (noise, em inglês).

Talvez você já tenha lido em livros didáticos ou artigos, que o ruído pode ser entendido como uma atividade neural espontânea ou como os vieses não-sensoriais da resposta (por exemplo, atenção, motivação). Entretanto, esta é uma interpretação errônea do conceito de ruído. É inegável a dificuldade de se entender a TDS, dada sua natureza estatística. Assim, na tentativa de simplificar, erros são cometidos. Cuidado com eles!

É comum representar graficamente a distribuição do ruído (r) e do sinal mais o ruído (s + r) sobre um eixo de decisão, como podemos ver na figura abaixo.

Distribuição do ruído (r) e do sinal mais o ruído (s + r) sobre o eixo de decisão. Cada observador define um critério (β), a partir do qual ele decide sobre a presença (“sim”) ou ausência (“não”) do sinal. O critério relaciona-se à força da evidência que o observador julga suficiente para tomar uma decisão. Esta evidência não depende apenas da intensidade da estimulação física do sinal, mas também de outros fatores.



Nesta figura podemos observar alguns pontos importantes. Em geral, para facilitar a explicação sobre a TDS, é utilizado um modelo gaussiano (normal) para representar as distribuições de r e s + r. Além de didático, este modelo é um dos mais utilizados. Entretanto, outras distribuições também são possíveis, porém não trataremos deste assunto aqui. Para uma discussão mais aprofundada e completa sobre este tema, sugerimos o artigo de Pastore, Crawley, Berens e Skelly (2003), cuja referência se encontra ao final deste texto.

Estas distribuições estão representadas sobre o eixo x, chamado de eixo de decisão.  Aqui é comum encontrarmos outro erro. Muitos textos consideram este eixo, como o nível de atividade sensorial. Entretanto, o correto é interpretá-lo como uma medida da evidência a favor (ou contra) uma alternativa (“sim” ou “não”, em nosso exemplo). 

Isto é, à medida que se aumenta o valor da variável de decisão (à direita), a força da evidência mudará de maneira sistemática favorecendo uma alternativa em detrimento de outra. Dessa maneira, a resposta do observador (“sim” ou “não”) dependerá de um critério de decisão adotado (β), ou seja, ele decidirá se a evidência é forte o suficiente para dar uma responda “sim”.

É importante ressaltar que a resposta do observador não depende apenas da intensidade do estímulo e de sua sensibilidade frente a ele. Ela depende do que o participante espera na situação, das conseqüências potenciais de sua decisão, entre outros fatores.
A TDS alcançou um alto grau de sofisticação metodológica e estabeleceu sua posição dentro da psicofísica, além de renovar o interesse sobre esta. Não houve a intenção de esgotar a TDS nestas poucas linhas. Há muitas outras questões importantes a serem abordadas para uma compreensão básica sobre esta interessante teoria. Por essa razão, seguiremos com este assunto em um próximo texto.

Quer baixar o texto? Clique aqui.


Leonardo Gomes Bernardino
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Gostou? Quer ler mais?


  • Green, D. M., & Swets, J. A. (1966/1988). Signal detection theory and psychophysics, reprint edition. Los Altos, CA: Peninsula Publishing.
  • Macmillan, N. A., & Creelman, C. D. (2005). Detection theory: A user’s guide. (2nd Edition). Mahwah, NJ: Erlbaum.
  • Pastore, R. E., Crawley, E. J., Berens, M. S., & Skelly, M. A. (2003). “Nonparametric” A’  and other modern misconception about signal detection theory. Psychonomic Bulletin & Review, 10 (3), 556-569.
  • Schiffman, H. R. (2005) Psicofísica. In: H. R. Schiffman, Sensação e Percepção (pp. 17-33). Rio de Janeiro: LTC.