quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Os primeiros estudos em assimetria cerebral



No texto Assimetria cerebral dissemos que o hemisfério esquerdo (HE) era considerado dominante devido à imediata conseqüência que lesões nele causavam no comportamento observado. Isto não ocorria com o hemisfério direito (HD), o que o fez ser considerado inferior.

Agora iremos abordar as primeiras pesquisas em assimetria cerebral, às vezes também chamada de lateralidade ou especialização hemisférica.


Conforme já citamos, os primeiros relatos de diferenças hemisféricas são antigos, por exemplo, John Hughlings Jackson (1835-1911) apontou que o HD possuía papel fundamental na percepção espacial (1874). Apesar deste relato longínquo, o assunto despertou maior interesse a partir da década de 1950, com Roger Sperry e seus colaboradores, como Ronald E. Myers, A. M. Schrier e Michael Gazzaniga.

A seguir apresentaremos como essa idéia de diferença hemisférica foi explorada e estudada.



Figura 1. À esquerda vemos Roger Sperry (1913-1994), pesquisador americano, agraciado com o Nobel de Fisiologia ou Medicina (1981) por suas pesquisas sobre separação do corpo caloso e identificações das funções hemisféricas. À direita vemos Michael Gazzaniga (1939-), um dos grandes responsáveis pelo nosso conhecimento sobre esta área



Como começaram estes estudos?


Em um de seus estudos seminais, Sperry e sua equipe treinaram gatos para discriminar estímulos visuais (formas geométricas) apresentados numa tela dentro de uma caixa. Os animais davam as repostas pressionando pedais com suas patas (ver Figura 2). Primeiro um grupo normal de animais foi treinado e estes aprenderam facilmente a tarefa proposta.



Figura 2. Caixa usada para o condicionamento dos gatos na tarefa de discriminação. À esquerda é possível ver o mecanismo utilizado para apresentação dos estímulos. Ali são apresentados dois exemplos de estímulos visuais utilizados na tarefa. O animal deveria diferenciá-los, pressionando a barra correspondente a cada estímulo.


Para testar se a estrutura chamada quiasma óptico (ver Figura 3) estava envolvida na transferência de informações entre os olhos, os pesquisadores separaram cirurgicamente esta estrutura em outro grupo de animais. Após a cirurgia, os animais foram treinados com um dos olhos vendados. Terminada a fase de aprendizagem, os pesquisadores venderam o olho que aprendeu a tarefa, liberando o que permaneceu ocluído. Com este olho, o gato comportou-se adequadamente na tarefa, cometendo pouquíssimos erros, indicando que houve transferência de aprendizado entre os olhos. Esta transferência ocorreu por alguma outra estrutura cerebral. Então nossos sagazes pesquisadores não pararam por aqui, pois eles ainda tinham algumas cartas na manga para descobrir como a informação poderia ser transferida.

Figura 3. Quiasma óptico humano. Você pode observar que informações que chegam à metade temporal da retina – perto das orelhas, são transmitidas para o mesmo hemisfério (ipsilateral). Enquanto isso, informações que chegam à metade nasal vão para hemisférios opostos (contralateral). Os pesquisadores separavam esta estrutura em destaque, só que em gatos, impedindo que informações se cruzassem. Isto garantia que estímulos apresentados em cada metade do campo visual fossem projetados ao hemisfério oposto. Fonte: Manual Merck



Nesta época ainda não era tão claro o papel do corpo caloso (Figura 4) nas funções cerebrais. Porém a funcionalidade do quiasma já era conhecida anatomicamente (Figura 3). Para testar se o corpo caloso poderia estar envolvido na transferência destas informações, foi realizado o seguinte procedimento. Primeiro foi separado apenas o corpo caloso de alguns animais. Como esperado, a informação foi transferida pelo quiasma óptico, que permaneceu intacto. Depois veio a grande sacada de nossos ilustres pesquisadores. Eles separaram agora tanto o corpo caloso quanto o quiasma óptico. Como conseqüência não houve transferência de aprendizado. Com base nisto eles puderam concluir que o corpo caloso era a estrutura envolvida na transferência de informações entre os hemisférios cerebrais.


Figura 4. Corpo caloso em visão frontal e lateral. Essa estrutura é responsável pela comunicação entre nossos hemisférios cerebrais. Fonte da imagem: Wikipedia 


A partir destes resultados foi possível entender melhor o processamento visual das informações no nosso cérebro, em especial entre os hemisférios. Após isto, Sperry, Gazzaniga e outros colaboradores estudaram pessoas com uma condição peculiar. Elas foram submetidas a uma cirurgia de comissurotomia (separação do corpo caloso). Antes que pensem mal dos nossos pesquisadores, isto não foi feito para fins científicos! Estas cirurgias foram realizadas para o tratamento de certo tipo de epilepsia intratável com remédios¹.

Então com base nos resultados obtidos com animais, eles poderiam agora estudar o funcionamento em separado dos hemisférios cerebrais em humanos.

Um elegante estudo conduzido por Sperry e Gazzaniga (1967) nos permite perceber as nuances da colaboração hemisférica nas tarefas do dia a dia. Por exemplo, foram apresentados vários objetos para um participante, um homem recém-comissurotomizado (ver nota 1). Foi pedido a ele que nomeasse estes objetos. Ele conseguia nomear normalmente todos os objetos. Em outra sessão, a tarefa era a mesma, porém o participante não podia ver os objetos, apenas explorá-los com o tato. Com a mão direita (comandada pelo HE) ele realizava a tarefa normalmente. Entretanto, com a mão esquerda (HD) ele não conseguia nomeá-los. Mas se os objetos lhe fossem mostrados, ele conseguia apontar qual objeto foi manuseado ².

Em geral as atividades diárias deste paciente não foram prejudicadas. Entretanto, ao criar engenhosos testes, os pesquisadores conseguiram por a prova a especificidade de cada hemisfério.


Resumindo, esta e outras pesquisas concluíram que os hemisférios possuem, grosso modo, as especificidades apontadas na tabela abaixo:

Principais funções dos hemisférios cerebrais
Hemisfério Esquerdo
Hemisfério Direito
  • processa vários aspectos da linguagem (por ex., compreensão e produção);
  • objetos (cerca de 90% dos humanos são destros);
  • aprendizagem de movimentos;
  • processar detalhes de uma imagem (alta freqüência espacial);
  • capacidade de interpretar e construir teorias sobre as relações entre eventos percebidos e sentimentos.
  • melhor desempenho em habilidades artísticas (por ex.; pintura e música);
  • reconhecimento de objetos tridimensionais em orientações não usuais;
  • reconhecimento de faces;
  • processar formas globais (baixa freqüência espacial);
  • tarefas visuoespaciais – como desenhar cubo e outros padrões tridimensionais;
  • monitoramento atentivo.



Mas só é possível estudar a lateralidade em populações clínicas?

Não. Doreen Kimura (1993-), em 1961, fez um estudo que ampliou as possibilidades para pesquisas em assimetria. Ela utilizou o método de escuta-dicótica (cada ouvido recebe uma informação diferente) em pessoas normais (ou hígidas). Encontrou uma vantagem do HD no processamento da informação lingüística. Mais tarde estes resultados foram refutados por problemas experimentais. Porém, o mais importante de sua pesquisa foi incrementar um método válido para se estudar a lateralidade em pessoas neurologicamente normais, ou seja, no cérebro intacto e funcional.


Além do método de escuta-dicótica, existem diversos outros métodos e técnicas para se estudar a assimetria em populações não-clínicas. Agora não cabe detalharmos cada um. Faremos isto de acordo com cada pesquisa apresentada. Bem, por enquanto era apenas isto que queríamos apresentar a vocês.

Quer baixar o texto? Clique aqui.
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Notas:

¹ Na metade do século XX, William Van Wagenen, realizou as primeiras cirurgias de separação do corpo caloso (comissurotomia) para o alívio dos sintomas de epilepsia intratável farmacologicamente. Isto impediria o excesso de descargas elétricas entre os hemisférios através do corpo caloso. Porém este procedimento foi abandonado porque seus resultados ficaram aquém do esperado. Com base nos estudos de Sperry, Joseph Bogen e Philip Vogel retomaram a comissurotomia. A hipótese foi de que possivelmente não houve separação total do corpo caloso. Então fizeram a separação total desta estrutura em uma série de pacientes com o mesmo tipo de problema, que ficaram conhecidos como a série da Califórnia. A partir disto, Roger Sperry e seu aluno Michael Gazzaniga realizaram diversos estudos com estes pacientes comissurotomizados (ou split-brains). Estas cirurgias são realizadas até hoje, sendo que há também a retirada de um dos hemisférios em alguns casos.


² Alguns pacientes logo após a cirurgia relataram alguns comportamentos bizarros. Por exemplo, um deles disse que certa vez ao tentar pegar uma camisa no armário, cada mão pegou uma. A mão esquerda pegou um tipo e a direita outro. Isso ocorreu sem o controle consciente do paciente. Este tipo de comportamento não foi relatado por outros pacientes.


Bruno Marinho de Sousa
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Se quiser aprender mais:

  • Sperry, R. W.; Myers, R. E.; Schrier, A. M. (1960) Perceptual capacity of the isolated visual cortex in the cat. The Quarterly Journal of Experimental Psychology, vol XII, 65-71. (Artigo que relata o primeiro estudo descrito).
  • Sperry, R. W.; Gazzaniga, M. (1967) Language following surgical disconnection of the hemispheres. Brain Mechanisms Underlying Speech and Language: Conference Proceeedings, 108-121. (Neste texto é apresentado o experimento no paciente que fez a comissurotomia).





terça-feira, 23 de novembro de 2010

Psicofísica Clássica I – Lei de Weber


Vamos continuar nossa conversa sobre Psicofísica?
Esta disciplina investiga a relação entre o contínuo físico e o contínuo psicológico. Alterações em um contínuo não são direta e simplesmente acompanhadas de modificações no outro. Um exemplo para ajudar a entender isso. Você tem dois amigos e você os julga como se tivessem a mesma altura. Ao verificar a altura de ambos, descobre-se que um tem 1,71 cm e outro 1,74 cm. Você percebeu-os (contínuo psicológico) da mesma altura, apesar de um deles ser 3 cm (contínuo físico) mais alto que o outro. Ou seja, a despeito de o contínuo físico mudar, o contínuo psicológico não sofreu alterações. O contrário também é verdadeiro, você pode perceber uma diferença (psicológica) entre estímulos sem alterar o contínuo físico. Por exemplo, todos os dias o seu vizinho escuta aquela música chata sempre no mesmo volume, porém hoje você está doente ou precisando dormir porque tem uma prova amanhã e percebe a música como mais alta do que o normal. O volume é o mesmo, mas você o percebe diferente.
Há alguma regra geral que explica essa relação entre os estímulos físicos e como o percebemos? Caso exista essa regra, ela é a mesma para todos os sentidos e suas modalidades sensoriais? E assim chegamos aos problemas aos quais a Psicofísica tenta responder.
Como foi descrito no texto O que é Psicofísica?, os primeiros experimentos considerados psicofísicos, apesar desse nome ainda não existir, foram realizados por Ernst Heinrich Weber (1795-1878). Em uma série de experimentos sobre percepção tátil entre os anos de 1829 e 1834, ele observou que percebemos mudanças relativas e não absolutas na estimulação física. 
Para tornar este ponto mais claro. Se durante a noite o pé de sua (seu) namorada(o) aumentasse 2 centímetros, provavelmente você não notaria. Mas e se o nariz dela(e) aumentasse 2 cm? Tenho certeza que você perceberia a diferença. Nos dois casos o aumento absoluto foi o mesmo (2 cm), porém em uma situação você percebe uma modificação e em outra não.
A partir dos resultados dos experimentos de Weber, desenvolveu-se o importante conceito de diferença apenas perceptível (d.a.p.) ou Limiar Diferencial, que é o aumento necessário na estimulação física para que uma pessoa perceba este aumento. Curiosamente, não foi a próprio Weber que expressou matematicamente a lei que conhecemos como Lei de Weber1, tal como a conhecemos hoje. O responsável por isso foi Gustav Theodor Fechner, considerado o pai da Psicofísica como vimos no texto anterior.  Mas o que diz esta Lei?
De modo bem simples, a Lei de Weber postula que a diferença apenas perceptível (d.a.p.) é sempre uma fração constante da intensidade inicial do estímulo. Em fórmula, poderíamos escrever assim
∆E = C.E
onde ∆E é a diferença apenas perceptível (d.a.p.), E é o estímulo inicial e C é uma constante de proporcionalidade, que ficou conhecida como constante de Weber.
Pode-se ainda escrever
C = ∆E/E
Em seus estudos, Weber encontrou que essa constante para pesos era de 0,025. Isso quer dizer que é a mínima diferença que pode ser percebida entre quaisquer dois pesos sempre segue esta constante e depende do valor inicial dos pesos.
Acho que com números será mais fácil ainda de entender.
Vamos supor que eu tenho uma mala de 40 kg. Qual seria o menor aumento de peso nesta mala que seríamos capazes de perceber? Por exemplo, se coloco 500 g a mais nesta mala, perceberíamos esta diferença? Em outras palavras, temos sensibilidade suficiente para perceber um aumento de 500 g em uma mala de 40 kg? Vamos verificar:
0,025(C) = ∆E /40 
∆E = 0,025 x 40 = 1 kg
A resposta é não, este aumento de 500 g não é perceptível em uma mala de 40 kg. Neste caso a diferença apenas perceptível (d.a.p.) é de 1 kg, isto é, o menor valor que podemos acrescentar no valor inicial (40 kg) que será por nós percebido é 1 kg .
Por outro lado, perceberíamos este incremento de 500 g em uma mala de 15 kg? Vamos aplicar a Lei de Weber mais uma vez:
0,025(C) = ∆E /15 
∆E = 0,025 x 15 = 0,375 kg.
Neste caso a resposta é afirmativa, porque a d.a.p. é 375 g, ou seja, é perceptível a diferença entre uma mala de 15 kg e outra de 15,375 kg e é óbvio que isto é verdadeiro também para uma mala de 15 kg e outra de 15,5 kg. É importante assinalar mais uma vez, que percebemos mudanças relativas e não absolutas, uma diferença de 500 g é perceptível em alguns casos e em outros não.  Ao aplicar a Lei de Weber, portanto, podemos predizer quando um aumento ou uma diminuição no estímulo será percebido.
Além disso, esta constante é importante porque funciona como um valor aproximado da capacidade discriminativa ou sensibilidade, sendo diferente para os diversos órgãos de sentido e constante para uma mesma modalidade sensorial. Quanto menor a constante de Weber, maior será a sensibilidade para determinado tipo de estímulo.
Ao longo do tempo, percebeu-se que essa constante não era assim tão constante, ou seja, não se pode afirmar que exista apenas uma constante para cada modalidade sensorial. Ela sofre importantes variações com valores de estimulação muito grandes ou muito pequenos, o que nos leva a concluir que a Lei de Weber é válida apenas para valores médios.
Apesar destas críticas, a Lei de Weber foi fundamental e o passo inicial dentro do pensamento de Fechner para o desenvolvimento da Lei que leva seu nome.
E a Lei de Fechner? Finalmente encontrou-se uma expressão matemática que explica a relação entre o contínuo físico e o contínuo psicológico? A resposta estará no próximo texto.

Quer baixar o texto? Clique aqui.

1 – Alguns autores chamam a Lei de Weber de Lei de Weber-Fechner, por ter sido Fechner que a expressou matematicamente. Outros ainda a nomeiam Lei de Bouguer-Weber. Pierre Bouguer (1698-1758) foi um matemático francês que constatou o fenômeno da diferença apenas perceptível (d.a.p.) para luminância cerca de um século antes de Weber. Em inúmeras fontes pesquisadas, a data desta descoberta é 1760, entretanto o ano da morte de Bouguer é 1758. Fiquei sem entender, mas de qualquer maneira seus achados antecipam os de Weber por muitos anos. Como curiosidade, Bouguer é o responsável por introduzir na matemática os símbolos ≥ para maior ou igual e ≤ para inferior ou igual

Leonardo Gomes Bernardino
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Gostou? Quer ler mais? 
  • Gescheider, G. (1997). Psychophysics: the fundamentals (3rd ed.). Lawrence Erlbaum Associates.
  • Schiffman, H. R. (2005) Psicofísica. In: H. R. Schiffman, Sensação e Percepção (pp. 17-33). Rio de Janeiro: LTC.

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

O que é Psicofísica?


Uma breve introdução à Psicofísica 


Experimente, faça essa pergunta a qualquer aluno de graduação em Psicologia. A grande maioria lhe responderá com outra interrogação, dessa vez no próprio rosto. Caso você pergunte se tiveram alguma disciplina ou mesmo uma simples aula sobre esse tema, é provável que a resposta seja não. Talvez você receba um não meio desconfiado, porque pensamentos como os que seguem serão comuns: “Será que isso é importante? Tomara que eu não tenha que aprender isso, pelo nome terei que fazer contas, escolhi Psicologia pra fugir da matemática, já basta ter estatística e ainda mais essa... Como é o nome mesmo? Psicofísica...”

Mais um teste. Pergunte ao mesmo aluno se ele sabe quando a Psicologia começou a ser reconhecida como ciência. A resposta será em uníssono: em 1879 com Wilhelm Wundt e a inauguração de um laboratório de psicologia experimental em Leipzig na Alemanha. Se nem isso eles souberem responder, é sinal que o ensino de Psicologia em nossas universidades e faculdades anda mal, muito mal... Mas isso é assunto para outro dia.

Voltando ao nosso assunto: o laboratório de Wundt permitiu que a Psicologia se separasse da Filosofia e fosse reconhecida como ciência com a introdução de noções como quantificar e mensurar. Até então a Psicologia limitava-se aos fenômenos da consciência e esta era considerada inacessível do ponto de vista científico. Até o famoso filósofo e matemático René Descartes afirmou que a consciência não podia ser estudada com métodos reconhecidamente científicos, como ocorria nos campos da Física, da Biologia e da Química. Mas como Wundt conseguiu superar essa dificuldade e investigar a relação entre a mente/consciência e o mundo físico/material?

A resposta é: graças à Psicofísica. Esta disciplina estuda a relação entre os estímulos físicos (por exemplo, a luminosidade de uma sala, o peso de um objeto) e a experiência sensorial, isto é, uma dimensão psicológica (quão clara a sala está e quão pesado é o objeto para você). E foi com experimentos com base psicofísica, que Wundt empreendeu esforços para dividir os processos mentais em seus componentes mais básicos.

Entretanto, não foi Wundt que iniciou essa maneira de investigar os fenômenos mentais. Os primeiros experimentos psicofísicos, principalmente sobre a sensação tátil, foram realizados por Ernst Heinrich Weber, professor de anatomia e fisiologia da Universidade de Leipzig. Isso mesmo, a mesma de Wundt. Numa época sem a rede mundial de computadores, estar próximo de grandes cientistas era fundamental para que boas idéias fossem fomentadas e desenvolvidas. Apesar dos estudos de Weber, o começo da Psicofísica é creditado à Gustav Theodor Fechner, um médico nomeado como professor de Física na Universidade de... não preciso dizer qual era, não é mesmo?

 
Fig 1. Da esquerda para a direita: Ernst Heinrich Weber (Imagem retirada do site: http://en.academic.ru/dic.nsf/enwiki/391300), Gustav Theodor Fechner (Imagem retirada do site: http://en.wikipedia.org/wiki/Gustav_Fechner) e Wilhelm Wundt (Imagem retirada do site: http://www.psych.upenn.edu/history/cattelltext.htm).
 
Fechner sonhava em descobrir uma equação que relacionasse o aspecto psíquico e o aspecto físico da realidade. Dessa maneira, acreditava que eliminaria o dualismo mente-corpo. Fechner conhecia os estudos de Weber e mais tarde reconheceu sua importância para a Psicofísica, inclusive o que hoje denominamos Lei de Fechner, foi por ele chamada Lei de Weber.

Atualmente, a International Society of Psychophysics (ISP)  organiza um congresso anual sobre Psicofísica, conhecido como Fechner Day . Este sempre ocorre em outubro e sempre que possível no dia 22 deste mês. Segundo os relatos, foi na manhã deste dia no ano de 1850, que Fechner concebeu a Psicofísica. Dez anos mais tarde, ele publicou “Elemente der Psychophysik”, o livro seminal desta disciplina. Este ano o Fechner Day ocorreu entre os dias 19 e 22 de outubro em Pádua na Itália e comemorou os 150 anos de publicação desse livro.

Desse modo, pode-se afirmar que a Psicofísica precede a Psicologia. A Psicofísica é, portanto, a primeira e mais antiga disciplina no amplo campo da Psicologia Experimental.  Infelizmente, o ensino da Psicofísica ou é negligenciado ou é totalmente ignorado nos cursos de graduação em Psicologia. Por isso, a maioria dos graduandos não sabe responder à pergunta que dá nome a este texto. Triste situação.

Embora as pessoas que a estudem não sejam numerosas, nestes 160 anos a Psicofísica se desenvolveu bastante, surgiram idéias e conceitos importantes e foram desenvolvidos métodos de mensuração para campos da ciência tão diversos como cartografia, ergonomia, criminologia e educação física. Além disso, encontra-se a Psicofísica aplicada em avaliação de comidas e bebidas, desenvolvimento de perfumes, avaliação de dor e diagnósticos médicos. Como se pode notar é um assunto amplo e não houve a pretensão de esgotá-lo. O objetivo era situar a Psicofísica dentro do campo da Psicologia e as leis e os métodos psicofísicos serão abordados futuramente.

Se você quer estudar a percepção e o modo como a realidade à sua volta é construída, então a Psicofísica não pode ser ignorada. E mais, deve ser estudada e compreendida.

Quer baixar o texto? Clique aqui.

Leonardo Gomes Bernardino
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Gostou? Quer ler mais? 
  • Gescheider, G. (1997). Psychophysics: the fundamentals (3rd ed.). Lawrence Erlbaum Associates.
  • Schiffman, H. R. (2005) Psicofísica. In: H. R. Schiffman, Sensação e Percepção (pp. 17-33). Rio de Janeiro: LTC.


quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Ilusões de imagens híbridas



Como nosso sistema visual segrega informações de freqüência espacial?

A manipulação digital de imagens provê ilusões visuais incríveis e nos ajuda a entender como o sistema visual humano funciona. Um grande exemplo é a ilusão “Dr. Angry and Mr. Smile” construída pelos pesquisadores Philippe G. Schyns, da Universidade de Glasgow, Escócia, e Aude Oliva, do Instituto de Tecnologia de Massachusetts.

Observe as duas faces das imagens abaixo. O rosto da direita apresenta uma mulher com semblante calmo e à esquerda podemos observar um homem zangado. Agora se distancie cerca de 3 metros da imagem e veja o resultado. As imagens mudam de expressão: a da direita sorri e a da esquerda está com uma feição calma. Como isso acontece? Para desvendar isso teremos que saber como elas foram construídas e ter noção de alguns conceitos físicos.

Fig. 1: Ilusão de mudança de expressão emocional em função da distância do observador. Se afaste alguns metros para ver a alteração do semblante (modificado de Schins e Oliva, 1999).

Toda energia eletromagnética de uma cena visual complexa que chega à retina carrega uma série de informações diferentes. Entre elas está a análise das freqüências espaciais, ou seja, o número de variações de luminância em determinado espaço. Uma imagem normal contém um padrão complexo de intensidades de luz, ou altas variações das freqüências espaciais, contendo desde freqüências muito baixas a altas. Padrões de altas freqüências consistem em elementos finos e detalhes. Já os padrões de baixa freqüência compõem elementos largos e grosseiros.

Fig. 2: Ilustração didática do conceito de freqüência espacial. Retirado de http://webvision.med.utah.edu/imageswv/KallSpat22.jpg
Por meio de uma técnica matemática, a Transformada de Fourier, podemos tomar a distribuição complexa da luz que abrange a cena visual, analisando-a em componentes senoidais simples e trabalhar a imagem em seu domínio de freqüência. A partir disso, podemos utilizar filtros: remover ou preservar seletivamente faixas de freqüências espaciais. Quando removemos as altas freqüências, ou seja, os contornos finos e detalhes de borda, estamos utilizando um filtro passa-baixa, e obtemos uma imagem embaçada. Já quando excluímos as baixas freqüências do espectro visual, estamos utilizando um filtro passa-alta, e obtemos uma imagem com contornos delicados sem variações de larga escala.

As freqüências espaciais altas são melhor percebidas à uma distância curta entre o observador e o objeto. Isso acontece porque elas são transmitidas por células retinianas ganglionares P (do latim parvum, pequeno), que possuem campos receptivos pequenos que, por sua vez, reagem a detalhes minuciosos. As baixas freqüências, ao contrário, são vistas mais a uma maior distância, pois estimulam células retinianas ganglionares M (do latim magnum, grande) que possuem campos receptivos grandes, o que as tornam praticamente incapazes de fazer discriminações finas.
               
A ilusão apresentada acima ao ser construída se valeu de uma técnica de processamento digital de imagens, o morphing. Por meio dele duas imagens são sobrepostas de maneira a formar somente uma imagem híbrida. A imagem à direita é composta por uma face neutra em passa-alta (altas freqüências) e outra sorrindo em passa-baixa (baixas freqüências), e da esquerda uma face zangada em passa-alta e uma face neutra em passa-baixa. Como as freqüências espaciais são captadas por diferentes vias neurais em função da distância, nós vemos a transformação das expressões emocionais nas faces ao nos distanciarmos delas.

A idéia trazida pelas imagens híbridas não é nova. Por década artistas vêm criando trabalhos que, dependendo de como são vistos, parecem diferentes, como a pintura de Salvador Dali, Mercado de escravos com o busto evanescente de Voltaire, pintada em 1940. Mais recentemente, os pesquisadores Aude Oliva e Antonio Torralba, do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, disponibilizaram na rede um site com uma galeria de imagens híbridas de freqüências altas x baixas (http://cvcl.mit.edu/hybridimage.htm). Abaixo uma das ilusões construídas por estes pesquisadores.

Fig. 3: Marylin-Einstein; Albert Einstein em altas freqüências e Marylin Monroe em baixas freqüências: se afaste alguns metros para ver a alteração (Aude Oliva, MIT, 2007).


Quer baixar o texto? Clique aqui.
Rui de Moraes Júnior

Para saber mais:
  • Schyns, G. P., & Oliva, A. (1999). Dr. Angry and Mr. Smile: when categorization flexibly modifies the perception of faces in rapid visual presentations. Cognition, 69, 243-265.
  • Oliva, A., Torralba, A., & Schyns, P. G. (2006). Hybrid Images. ACM Transactions on Graphics, ACM Siggraph, 25-3, 527-530.


O mistério do sorriso de Mona Lisa


O quadro de Mona Lisa, pintado entre 1503 e 1506, se encontra atualmente no Museu do Louvre em Paris e é considerado a obra de arte mais famosa e importante da história. Parte disso se deve ao mistério do seu sorriso. De interpretação dúbia, ele já foi visto como inocente, maternal, convidativo, triste e até lascivo. E isto tem intrigado a comunidade artística e científica ao longo dos tempos.

Fig. 1: Mona Lisa, quadro de Leonardo da Vinci exposto no Museu do Louvre em Paris, França. Imagem retirada do site: http://escafandro.blogtv.uol.com.br .

Muitos investigadores tentaram explicar o mistério ao redor deste sorriso. Sigmund Freud interpretou o sorriso de Mona Lisa como uma atração erótica de Leonardo da Vinci em relação a sua mãe

A professora Margaret Livingstone, da Universidade de Harvard, afirmou que o sorriso da Mona Lisa desaparece quando olhado diretamente. Isso acontece porque usamos a visão foveal, acurada para cores e detalhes, melhor para perceber freqüências espaciais altas. Como o sorriso está quase totalmente em freqüências espaciais baixas, a visão periférica é melhor para percebê-lo, já que processa com mais eficiência esta faixa do espectro visual. Sendo assim, o sorriso só se torna aparente se o observador fixar a atenção nos olhos ou em outra região da face.

Isto está relacionado com os diferentes canais de transmissão da informação, como mostrou Luis Martinez Otero, do Instituto de Neurociências de Alicante, Espanha. As células da retina são especializadas para transmitir diferentes categorias de informação: tamanho, brilho, localização, freqüência espacial, etc. E como o olho humano manda sinais misturados ao córtex, um canal de transmissão pode sobrepor-se ao outro. Por isso, às vezes vemos o sorriso, outras vezes não. Um dado interessante desta pesquisa é que os participantes começavam a ver o sorriso mais aparente a partir do momento que viam o retrato num tamanho aumentado ou de perto. Isto sugere que as células da retina que completam a visão da região do ponto cego convergem informações da mesma maneira que a visão periférica.

Fig. 2: Aplicação de ruído visual feito por Kontsevich e Tyler (2004).
 
Já Christopher Tyler e Leonid Kontsevich, do Instituto de Pesquisa do Olho Smith-Kettlewell de São Francisco, afirmam que a aparente mutabilidade do semblante da Mona Lisa se deve, em parte, a uma fonte diferente: o ruído randômico do sistema visual, uma atividade cerebral natural e ininterrupta de descargas neurais de padrão aleatório que pode ser comparado, numa analogia distante, ao efeito causado por um canal de TV mal sintonizado. Ele também pode ser causado por flutuações de fótons que atingem as células foto-receptoras. Estes pesquisadores sugerem que o estado emocional da Mona Lisa é codificado por poucos pixels que se encontram nos cantos de sua boca. Um ruído que aumenta o canto da boca, passa a impressão de felicidade e um ruído que rebaixam seus lábios a faz parecer mais triste.  

Outra tentativa de desvendar o mistério do sorriso da pintura foi feita pelo grupo de pesquisa de Nico Sebe, da Universidade de Amsterdã, em conjunto com colaboradores da Universidade de Illinois, que tentou revelar o famoso sorriso da Gioconda através de um algorítimo desenvolvido e de um software apropriado para reconhecer emoções. A expressão emocional é determinada pela comparação de dados dos traços faciais dados, como curvatura dos lábios e rugas ao redor dos olhos, que são cruzados entre o quadro de Da Vinci e de um banco de faces de mulheres jovens. A análise sugere que a Mona Lisa estava 83% feliz, 9% angustiada, 6% assustada e 2% chateada.

Mais recentemente, pesquisadores do Centro de Pesquisa e Restauração de Museus da França e do European Synchrotron Radiation Facility afirmaram que o efeito de mistério se deve à técnica que Da Vince utilizava, o sfumato, responsável pelo efeito esfumaçado. Ele chegava a aplicar 40 camadas de esmalte sobre a tela que, junto a outros pigmentos, cria borrões e sombras nos lábios que faz com que o sorriso pareça ser quase imperceptível quando visto de frente. O estudo foi conduzido por meio de espectometria por raios x fluorescentes, que não necessita da retirada de amostras.

Será que Leonardo da Vinci pretendia causar esta confusão nos cérebros dos observadores, sem mencionar os dos cientistas? Provavelmente. Em um de seus livros ele disse que estava tentando pintar expressões faciais dinâmicas, porque era isto que ele via nas ruas

Por fim, vale lembrar que as visões científicas tentam desmistificar técnicas que os pintores têm utilizados há muito tempo, e os achados não desmerecem de forma nenhuma o trabalho destes artistas.

Quer baixar o texto? Clique aqui.

Rui de Moraes Júnior

Para saber mais:
  • Kontsevich, L. L., & Tyler, C. W. (2004). What makes Mona Lise smile? Vision Research, 44, 1493-1498.
  • Livingstone, M. S. (2000). Is it warm? Is it real? Or just low spatial frequency? Science, 290, 1299.

    Assimetria cerebral

     O que é assimetria cerebral? Uma introdução ao assunto

    Neste primeiro texto para o blog abordaremos um assunto que ficou em voga há um tempo. A assimetria cerebral refere-se às diferentes capacidades que cada hemisfério cerebral possui para processar a informação que chega até nós, através dos nossos órgãos dos sentidos (olhos, pele, ouvidos, etc.). Como você deve saber, temos um cérebro que é dividido em duas partes, hemisfério esquerdo e direito. Anatomicamente eles são muito similares, mas funcionalmente eles possuem capacidades diferenciadas.

    Hemisférios cerebrais esquerdo (embaixo) e direito (acima). Fonte:Morphonix



    Provavelmente você já deve ter ouvido/lido que o hemisfério direito é mais criativo, enquanto o esquerdo, mais matemático. Algumas pessoas até atribuem estas diferenças hemisféricas a traços de personalidade, por exemplo, alegam que a pessoa é mais “hemisfério esquerdo” (menos emotiva ou “racional demais”). Iremos abordar melhor este assunto em outros textos.


    Mas de onde veio a assimetria cerebral? Quem a descobriu?

    Um dos primeiros relatos consistentes sobre a relação entre hemisfério cerebral e função hemisférica veio de um médico francês chamado Marc Dax (1771-1837). Ele percebeu que vários de seus pacientes com lesões no lado esquerdo da cabeça apresentavam problemas de fala. Entretanto o mesmo não ocorria quando as lesões eram do lado direito. Apresentou seus dados e observações num congresso médico, mas elas foram ignoradas porque na época o pensamento vigente sobre o funcionamento do cérebro era baseado na frenologia.

    Não demorou muito, outro francês Paul Broca (1824-1880) novamente levantou a questão da relação entre lesão no hemisfério esquerdo e problemas na fala decorrentes disto. Inclusive chegou a especificar uma área para a fala, que mais tarde recebeu seu nome em sua homenagem, a área de Broca responsável pela produção da fala, que na maioria de nós fica do lado esquerdo, logo acima da orelha esquerda.

    Desta vez esta relação não passou em branco, tanto por Broca ser um pesquisador eminente, quanto pelo debate acalorado que ocorria no campo científico na época. Vários estudos subseqüentes confirmaram estas evidências e ampliaram o conhecimento sobre a questão.

    Devido a evidente seqüela comportamental que lesões em certas regiões do hemisfério esquerdo (áreas de Broca e Wernicke, por exemplo) causam na fala – não tendo um correlato similar no hemisfério direito – o esquerdo passou a ser chamado de “dominante” por muitos anos, enquanto o direito era considerado inferior. Porém, atualmente esta idéia de dominância não mais reflete as verdadeiras funções dos nossos hemisférios. De forma geral, podemos dizer que o nosso hemisfério esquerdo é envolvido em vários aspectos da linguagem, desde a sua produção até a compreensão, e por outro lado, o direito é responsável em grande parte pelas relações espaciais no ambiente.

    Então, agora quando você souber de alguém que teve um derrame, você já pode descobrir com grande chance de acerto, em qual lado do cérebro isto ocorreu. Se a pessoa tiver problemas de fala provavelmente foi no hemisfério esquerdo. Mas e se for no hemisfério direito?

    Logo iremos abordar mais detalhes dos nossos hemisférios, como os pesquisadores fazem para estudá-los e estabelecer suas funções.

    Até mais,

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    Bruno Marinho de Sousa
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    Sobre o assunto:
    • Cérebro esquerdo, cérebro direito. Sally P. Springer & Georg Deutsch. (Tradução: Thomaz Yoshiura), São Paulo: Summus, 1998. (Este é um livro bem acessível em sua linguagem e fácil de ser encontrado em sebos).
    A imagem do cérebro deste texto foi alterada para a atual em 20/102013 às 02:36h.