Mas já
imaginou poder se localizar no ambiente por uma espécie de sonar como os morcegos fazem?
Não conseguimos fazer isso porque nossos órgãos sensoriais são específicos e
possuem limites para captação e transformação da energia ambiental (leia mais
nestes textos sobre luz e olho e neste sobre cultura e percepção). Isso também se aplica a outros mamíferos. Por exemplo, nós e ratos não
enxergamos a luz infravermelha (Figura 1).
Figura 1. Esquema do espectro visível ao
olho humano. A luz infravermelha fica além do espectro da luz vermelha, por
isso possui esse nome. Clique na imagem para ampliar. Fonte: blogpercetpo.
Apesar
de não vê-la, você mantêm contato com a luz infravermelha todos os dias, por
exemplo, ao acionar um controle remoto. Você clica num botão para mudar o canal
da televisão e uma onda sai do seu controle e chega até a TV. Entretanto, você
não vê nada desse caminho da luz!
Mas como
seria se pudéssemos ver coisas que nossos órgãos dos sentidos não estão
preparados para captar? Como nosso cérebro interpretaria essa informação?
Poderíamos ampliar a capacidade de um sentido utilizando as áreas corticais de
outro (como os cegos fazem)? Na figura abaixo temos um exemplo da ficção para
isso.
Figura 2. Demolidor, personagem da Marvel Comics. Demolidor ficou cego na
adolescência ao entrar em contato com lixo tóxico. Após o acidente seus outros
sentidos ficaram desenvolvidos além da capacidade humana. Como você poderá ler
no texto, talvez isso agora não esteja tão mais distante... Fonte da imagem: MoviesMedia.
No
texto sobre como o tato pode enganar o paladar apresentamos uma pesquisa simples que mostra como misturar os sentidos durante
uma tarefa atrapalha nosso julgamento sobre a comida.
Agora
outra pesquisa fez algo inusitado e inovador ao adicionar estímulos que não são processados naturalmente por um animal. Pesquisadores fizeram algumas ratinhas
perceberem a luz infravermelha – aquela que nem nós e nem os ratos enxergam! Essa
pesquisa foi realizada por Miguel Nicolelis (Figura 3) e sua equipe. Ele é um pesquisador
brasileiro da Universidade de Duke e fundador e diretor científico Instituto Internacional de Neurociências deNatal Edmond e Lily Safra (IINN-ELS).
Figura 3. Miguel Nicolelis, pesquisador brasileiro. Mais informações no site
de seu laboratório na Universidadede
Duke e no Instituto Internacional de Neurociências
de Natal Edmond e Lily Safra (IINN-ELS).
Fonte da foto: Beyond Boundaries.
Antes de
explicar a pesquisa, você deve saber que as pesquisas com animais, geralmente, começam com o aprendizado de
alguma tarefa. Para “incentivar” os animais a realizarem essa tarefa, eles podem,
por exemplo, sofrer privação por algum tempo de água e/ou comida. Então, os
pesquisadores elaboram algum problema que os animais devem resolver para ganhar
a água e/ou a comida. Isso permite que os pesquisadores entendam o
comportamento de aprendizagem do animal antes e depois da manipulação de variáveis que lhes interessam.
Os
animais da pesquisa de Nicolelis ganhavam água pelo comportamento adequado na
tarefa. Seis ratas (Figura 4) foram treinadas numa tarefa de discriminação
visual: colocar o focinho na porta em que uma luz comum de LED se acendia. Esses
animais recebiam água toda vez que colocavam o focinho na porta que a luz
acendeu (Figura 5a).
Figura 4. Rato da raça Long Evans, a mesma utilizada
na pesquisa. Fonte da imagem: Hilltop Lab Animals.
Quando a
taxa de acerto foi superior a 70% os animais foram para uma nova etapa. Nesta
segunda etapa os pesquisadores fixaram uma espécie de capacete na cabeça das ratas. Nesse capacete havia um sensor de infravermelho. Esse sensor funcionava como um órgão do sentido. Ele captava a
luz infravermelha e a transformava em corrente elétrica.
Esse
sensor foi conectado por microeletrodos a uma região específica do cérebro das
ratas, S1, se transformando numa neuroprótese. A região S1 é responsável pelo tato nas
vibrissas (bigodinho) do animal. Os ratos usam essas vibrissas para detectar a
informação do ambiente (Figura 5b).
Essa
neuroprótese permitia que as ratas percebessem
os níveis de luz infravermelha como estimulação elétrica em S1. E essa
estimulação aumentava perto da fonte de infravermelha.
Figura 5. À esquerda (a): um
esquema da ratinha com seu capacete (neroprótese) com sensor
infravermelho. O círculo rosa representa a luz infravermelha acesa
estimulando o sensor e esse enviando informação à área S1 no cérebro do animal.
À direita (b): representação da vibrissa de um rato e a área S1 (círculo
vermelho) indicada em seu cérebro. Clique na figura para ampliar. Fonte (a): artigo dos autores na Nature Fonte (b): Science Direct.
Após o
implante da neuroprótese os animais foram treinados numa tarefa idêntica à
primeira. Mas agora receberiam água apenas se enfiassem o focinho na porta em
que se acendesse a luz infravermelha (Figura 5a). Antes de continuarmos, lembrem-se,
os ratos não enxergam a luz infravermelha. Mas não
é que as ratas perceberam o
infravermelho nessa nova etapa!! O equipamento estava captando a luz infravermelha,
transformando em corrente elétrica e enviando para o cérebro. E o cérebro dos animais
conseguiu interpretar essa nova informação como uma estimulação ambiental! A
taxa de acerto subiu com o passar dos dias e ultrapassou os 70%.
Como já
dissemos em outros textos, os pesquisadores são muito espertos. As ratas
talvez pudessem não responder ao equipamento conforme eles interpretaram, mas
sim a outro evento do ambiente. Para tirar essa dúvida usaram a boa e velha PSICOFÍSICA para manipular outras variáveis e
observar o comportamento decorrente disso. Notem que a psicofísica não é apenas
algo velho com valor histórico. Pesquisas de ponta a utilizam até hoje!
Nesses
testes psicofísicos os pesquisadores aumentaram a dificuldade na tarefa (mudando o
ângulo das portas). Também deixaram essas portas mais juntas, o que
dificultaria a identificação de qual porta teve a luz infravermelha acesa.
Miguel e
sua equipe também pensaram que as ratas poderiam não ser sensíveis a
intensidade da luz infravermelha e estariam funcionando num esquema de tudo-ou-nada
(não percebiam ou percebiam). Então, alguns animais receberam input da neuroprótese apenas do tipo
tudo-ou-nada sobre a luz infravermelha. Outros animais receberam inputs de intensidade gradativa. Também deixaram
dois animais sem estimulação, apenas com a neuroprótese inativa (afinal, tem
que se saber se apenas usá-la não alterava o comportamento também).
Bem, o
que esses testes apontaram? Que as ratas realmente perceberam a luz
infravermelha, pois o comportamento variava com a manipulação das variáveis. Também,
que a percepção da intensidade da luz infravermelha era importante para elas,
uma vez que influenciou a latência de seu comportamento (tempo entre
apresentação da luz e a resposta do animal).
Exames
posteriores mostraram que os neurônios de S1 (Figura 5b) mantiveram habilidade
para responder ao comportamento de mexer as vibrissas (bigodinhos). Esses neurônios estavam
fazendo duas representações corticais, uma para o tato e outra para a luz. E
essas representações ficaram sobrepostas, criando uma nova região de
processamento sensorial bimodal (processando dois sentidos)!
E o
reflexo comportamental dessa sensação bimodal foi marcante no começo da segunda
etapa. Como a neuroprótese se conectava à mesma região que representa o bigode
no cérebro, as ratas não sabiam como interpretar essa estimulação. Então
elas realizavam comportamento de passar as patas no bigode, como se houvesse
uma estimulação chegando ali e não do sensor ligado no cérebro.
Essa
pesquisa traz possibilidades enormes para nossa percepção e nossos órgãos dos
sentidos. Já faz algum tempo que alguns pesquisadores tentaram criar uma retina eletrônica, mas a qualidade da imagem é ruim. O que Nicolelis e colaboradores fizeram
vai além. Como eles apontam, essa foi a primeira vez que um ser vivo foi capaz
de ultrapassar as limitações sensoriais de seu corpo e perceber estímulos aos
quais não estão equipados para perceberem. Ainda, pode ser possível ampliar a
capacidade sensorial dos sentidos que já utilizamos (igual ao Demolidor da
ficção – Figura 1).
Infelizmente
as ratas não são capazes de dizer o que sentiram ao perceber a luz
infravermelha. Então ainda não sabemos o que essa nova percepção faz sobre
nossa consciência do mundo.
A
pesquisa de Nicolelis e seus colaboradores criam grandes possibilidades de uso
de seus resultados. Para o estudo da percepção ela pode ter aberto um ramo
totalmente novo: a percepção bimodal. Qual estímulo prevalecerá para ser
processado pela área primária do cérebro? O estímulo que essa área está equipada
para processar ou o novo/adaptado?
Imagine,
por exemplo, o caso de pessoas cegas. Em vez da retina eletrônica, elas
poderiam receber uma neuroprótese para perceber o calor do corpo de outras
pessoas e do ambiente ao redor. Assim poderiam perceber se as superfícies
distantes são frias ou quentes, e elas poderiam machucá-los (Figura 6). Até
mesmo poderiam ter noção do que está ao seu redor pela forma do mapa de calor
que perceberiam.
Figura 6. Uma rua fotografada por uma
câmera infravermelha. Será que seria assim que as pessoas cegas com uma
neuroprótese para perceber infravermelho ligado ao cérebro perceberiam a rua?
Fonte: Abordagem Policial.
Na mistura de sensações naturais um sentido se sobrepõe ao outro e altera nossa
percepção sobre o alimento. Mas uma pessoa com uma neuroprótese, como a das
ratas, entenderia que está recebendo informações de uma nova forma de estímulo
que nunca processou? Ou apenas interpretaria esse estímulo como algo do
ambiente sem base uma base real, como uma alucinação? A resposta sobre a
consciência da percepção bimodal é incerta. Apenas novas pesquisas responderão
a essas perguntas.
Quer baixar o texto? Clique aqui.
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Bruno
Marinho de Sousa
Se quiser aprender mais:
Thomson,
E.E.; Carra, R. & Nicolelis, M.A.L. (2013). Perceiving Invisible Light through a Somatosensory
Cortical Prosthesis, Nature
Communications, 4:1482, acesse aqui.
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