domingo, 23 de junho de 2013

“É só uma teoria” ou como conceitos científicos são distorcidos

Esse texto irá tratar de concepções errôneas que as pessoas possuem sobre alguns termos científicos. É um texto informativo e serve para que vocês tenham noção do quanto é importante que se tenha em mente as definições corretas deles. Alguns termos foram também abordados num texto da Scientific American

Figura 1. Pense duas vezes antes de deslizar nos termos usados de maneira incorreta. Fonte da imagem: Knowledge Exchange 


Recentemente alguns equívocos científicos foram cometidos por um pastor ao dar uma entrevista. Esse pastor se valeu de sua formação em psicologia para justificar algumas concepções científicas equivocadas. Veja a entrevista no youtube por aqui.

A idéia do texto não é desmerecer ou elogiar suas concepções religiosas (isso ele conhece muito bem). Mas sim, é um texto para elucidar algumas concepções errôneas sobre ciência que foram (e ainda são) propagadas. Muitas dessas concepções além de serem utilizadas de forma incorreta, levam o ouvinte/leitor a interpretar errado determinado fato. Essas idéias equivocadas obstruem nosso pensamento crítico sobre o tema abordado.

A primeira concepção equivocada dele foi utilizar relatos de Sigmund Freud (1856 – 1939) sobre a “cura gay”.  Esse relato não se traduz em “cura científica”. Um dos pontos mais importantes (se não for o mais) da ciência é a replicabilidade de resultados. O que isso quer dizer para algum tratamento ou qualquer outra descoberta científica? Simples, se eu faço uma pesquisa aqui na minha cidade para tratar alguma doença, outra pessoa, em qualquer lugar do mundo, deve ser capaz de seguir meu procedimento e obter um resultado similar. Assim, por meio de várias pesquisas com resultados semelhantes, obtidos por um mesmo procedimento, teremos um tratamento adequado. É por isso que as pesquisas pormenorizam o método utilizado, descrevendo o grupo de participantes (idade, sexo etc.), os equipamentos utilizados, como foi feito o experimento (condições e método de coleta de dados etc.). Essa descrição detalhada garante que outros pesquisadores repliquem a pesquisa. Apenas o relato de alguém notório não torna o tratamento eficaz.

Então é muito prejudicial quando uma autoridade fala de uma área que não domina. Pegando o exemplo da “cura gay”, isso é prejudicial de duas maneiras: direta (a pessoa acredita que existe uma cura científica porque a autoridade citou um pesquisador famoso que falou isso há quase cem anos!) e indireta (a pessoa que ouviu isso pode tratar mal parentes e/ou amigos por serem gays, já que é “só" se tratarem para não serem mais assim). Outros pesquisadores que afirmaram realizar a “cura gay” não mostraram os dados de suas pesquisas (clique aqui para ler) ou então revisaram suas pesquisas e mudaram de opinião (clique nesse link). Ambos os textos estão em inglês.

Figura 2. William Masters e Virginia Johnson, dois estudiosos da sexualidade humana. Eles supostamente curavam homossexuais. Mas seus dados controversos nunca foram postos à prova pela comunidade científica, nem provados por eles. Fonte da imagem: Scientific American 


Recentemente, mais um exemplo do uso de autoridade num ramo da ciência foi descrito pela pesquisadora Suzana Herculano-Houzel. Em seu blog, ela comenta sobre o livro Uma Prova do Céu, do qual ela foi revisora técnica da versão em português (leia o texto aqui). Nesse livro, um neurocirurgião relata sua experiência de coma e diz que ela é a prova de que a consciência existe fora do cérebro. Segundo o autor, seu cérebro “...simplesmente não estava funcionando” (leia mais nesse link). Mas ele não realizou nenhum teste neurofisiológico para fazer tal afirmação. Ele se vale apenas de sua autoridade para justificar seu ponto de vista.

Não existe problema algum de pessoas com notoriedade científica emitirem suas opiniões sobre experiências pessoais. Essas opiniões só se tornam problema quando a pessoa se vale de sua notoriedade para validar algo que não foi testado cientificamente. O público que não possui formação científica geralmente não consegue diferenciar evidências científicas da opinião de um cientista.

Agora aproveitando a reportagem da Scientific American outros pontos muito comuns de equívocos com termos científicos serão apresentados. Antes, você deve ter em mente que toda pesquisa científica se pauta em alguma forma de análise de dados. A mais comum delas é a estatística inferencial. Basicamente, esse tipo de estatística tira conclusões de amostras (parcela limitada do total de uma população) para inferir algo sobre a população, valendo-se da estimação e do teste de hipóteses (aprenda mais nesse site).

Figura 3. A estatística deve ser bem utilizada para indicar diferenças entre as condições. As interpretações dos resultados dependem de outras informações. Fonte da imagem: Ereleases


Hipótese: em ciência, uma hipótese é uma possível explicação para um fenômeno. Ela é descrita em forma de previsão. A forma clássica e mais simples de se fazer essa previsão num estudo (pelo menos a mais comum nos livros didáticos) seria assumir duas posições diante de um problema ou questão: a) hipótese nula: não há diferença entre dois grupos (ou condições) e b) hipótese teste (alternativa): há diferença entre os grupos. A partir dessas pressuposições a pesquisa segue e então a hipótese nula é ou não rejeitada com base nos resultados. Essas conclusões são probabilísticas e por isso buscam-se evidências convergentes com outras pesquisas. Em outras palavras, quanto mais pesquisas ficam a favor de uma hipótese, mais robusta essa explicação se torna.

Significativo/significante: esse é um termo muito importante e você o encontrará na sessão “Resultados” de um artigo científico. Você realiza seu experimento, coleta seus dados e faz suas análises estatísticas (teste t, análise de variância – ANOVA, qui-quadrado etc.) e encontra diferenças entre as condições. A análise estatística apenas indica se a diferença é significante/significativa entre as condições da pesquisa.  A interpretação desses resultados para algo mais amplo será feita com base numa série de fatores, como o arcabouço teórico que conduziu a pesquisa. Lembrando que não são todas as áreas da ciência que utilizam estatística inferencial.

Natureza versus Ambiente (do inglês, nature versus nurture): esses termos aparentemente simples geram muita confusão e debate ao tratar do comportamento do ser humano. O principal problema desses termos não é o significado, mas a idéia de tudo ou nada que eles podem passar. Se um comportamento não tem origem genética, logo se entende que ele foi aprendido. Mas não funciona assim. Os genes nos influenciam, mas também a epigenética (ambiente modificando a herança celular, leia mais nesse site e aqui).

As modificações então podem ser de mão dupla e alteram quais genes serão “ligados” (ativados). Além disso, essa interação é facilmente influenciada pelo ambiente (alimentação, exposição a produtos tóxicos e etc.). Essa alteração é um processo complicado e difícil de prever.  Steven Pinker usa uma metáfora geométrica para explicar a relação natureza e ambiente: dar mais peso para uma das duas opções (natureza ou ambiente) é igual você alegar que a altura do retângulo é mais importante que a largura para se calcular a área. Não é possível esse cálculo sem uma das duas medidas, uma pode ser maior que outra, mas ambas se influenciam. 

Figura 4. Como se calcula a área do retângulo. Agora imagine que a relação natureza X ambiente seja a área do retângulo. Então cada um dos fatores contribui com um peso diferente para o valor da área. Fonte da imagem: Mecânica Resolvida


Cético/Ceticismo: todo cientista deve ser cético. Isso faz parte da ciência e é isso que permite a evolução do pensamento científico. Em geral, ser cético é entendido como não crer em um ser divino, ou ser ateu. Em ciência, ser cético é duvidar, ter a mente aberta para uma explicação alternativa. Acima comentamos sobre o livro Uma Prova do Céu. Não se pode aceitar os argumentos do autor só porque ele é um cientista e uma autoridade em sua área do saber. Ele não nos forneceu provas (evidências) de que seu cérebro não estava funcionando. Além disso, há alguma explicação alternativa para os fenômenos que ele descreveu? Essa é a postura crítica e cética que um cientista deve ter. E não devemos confundir ceticismo com negação pura e simples. Negar veementemente que algo não existe, ou que não é possível de ocorrer não é ceticismo.

Teoria: Esse termo é a cereja do nosso bolo. Foi o uso desse termo que me incentivou a escrever o texto. Infelizmente, na entrevista citada o entrevistado (após usar a “autoridade” da sua formação em psicologia) depreciou a Teoria da Evolução das Espécies (aqui há um texto introdutório sobre o assunto), dizendo que ela é apenas uma teoria. Para o público leigo, isso faz parecer que o termo “teoria” se refere apenas a uma idéia, uma suposição acerca de um fenômeno. Entretanto, em ciência este termo possui um sentido bem específico.

Uma teoria é um conjunto de conhecimentos organizados para explicar um fenômeno. Para isso, uma teoria precisa definir os fatos (conceitos), descrever as relações entre esses fatos e explicar a ocorrência deles.  A partir disso, se a teoria é bem sucedida ela é capaz de organizar o conjunto de conhecimento em torno de um fenômeno, sugerir hipóteses e também sobreviver a testes ou pesquisas que tentam refutá-las. Aqui você encontra uma teoria explicada de forma divertida e em imagens:  9gag.

Em termos científicos, uma teoria não é fruto da imaginação de alguém, que os outros cientistas tomam como verdade. Ela é a explicação mais provável para algum evento ou fenômeno que os cientistas estudam. Ela é fundamentada em experimentos, testes ou evidências (por exemplo, os fósseis para a Evolução). Assim, a evolução é uma teoria porque existe uma grande quantidade de evidencias que dão suporte a ela.

Quer baixar o texto? Clique aqui.


                                         Bruno Marinho de Sousa (esse texto também contou com a contribuição de Leonardo e Rui em pontos chaves).

Aprenda mais aqui:

Texto da Scientific American sobre alguns dos termos abordados aqui: Just a theory (em inglês).

Texto muito bom do projeto Ockham: Método Científico

Hipóteses, teorias e leis, do Science Blogs: Hipótese, teorias e leis


Outra dica: se possível curse uma disciplina de estatística.