domingo, 10 de agosto de 2014

Psicofísica Clínica



No texto O que é Psicofísica?, nós apresentamos esta área do conhecimento que busca relações entre a realidade do mundo físico e a experiência psicológica organizada por nossos processos mentais. Em um texto seguinte, Psicofísica no século XXI, fomos adiante e reafirmamos o papel da subespecialidade mais antiga da psicologia (inclusive anterior a ela) no cenário atual, em que as neurociências utilizam modernas técnicas para acessar o funcionamento cerebral em tempo real. Neste texto, para além do campo epistemológico, vamos falar da atualidade e importância da psicofísica em sua aplicabilidade clínica.

 A psicofísica clássica criou métodos robustos para estudar os processos sensoriais por meio de rigoroso controle experimental e de funções matemáticas, e com isso estabeleceu correlações entre a atividade cerebral e a perceptual. A partir disso, é possível inferir valiosas informações sobre o processamento mental, o desenvolvimento e funcionamento do sistema nervoso normal e como lesões e desordens patológicas o afetam. Isso permite, em muitos casos, avaliação, diagnóstico, monitoramento e reabilitação de diversos quadros clínicos.

Você mesmo provavelmente deve ter realizado alguns testes fundamentados nos pressupostos psicofísicos sem se dar conta, como a audiometria e o teste de Snellen de acuidade visual (aquele tradicional "exame de vista"; Figura 1) por exemplo. Testes como estes medem a quantidade de energia que é necessária para um órgão sensorial detectar ou identificar um estímulo. Esta energia pode ser mecânica, como o movimento do ar no caso da audiometria, eletromagnética, como no caso das ondas luminosas no teste de visão, ou de outra modalidade, como química e térmica. Pelo fato destas medidas de limiares serem muito acuradas, alterações podem refletir danos teciduais nos órgãos do sentido medido. E mais, estes testes psicofísicos clínicos geralmente são bons instrumentos para diagnóstico precoce, pois acusam alterações de doenças sistêmicas e do sistema nervoso antes que alterações anatômicas e fisiológicas possam ser identificadas. E os mesmos instrumentos podem ser utilizados para monitorar a evolução do quadro e o efeito do tratamento porque, em geral, são de baixo custo, não invasivos e de fácil aplicação. 


Figura 1. Exemplos de testes clínicos amplamente utilizados e com bases na psicofísica. Na imagem superior (a) você vê o ambiente de testagem da audiometria, e na imagem inferior (b) está a tabela de Snellen para avaliação da acuidade visual. Fonte das imagens: http://assessmentandinterventiongroup8.wordpress.com/vision/acuity-assessment/ e http://www.audiovozsp.com.br/audiometria.html.

 Outros exemplos de instrumentos e técnicas utilizados na clínica são as curvas de sensibilidade audiométrica da fala, os diferentes exames de acuidade visual, a função de sensibilidade ao contraste, avaliação da visão de cores e testes neurológicos para mensurar a dor. Medidas da percepção são feitas em diversos estímulos. Discriminação de variações de luminância ao longo do espaço, por exemplo, permite uma avaliação da integridade de diferentes células/vias do sistema visual (Figura 2). A partir disso, vários quadros podem ser diagnosticados e monitorados: diabetes mellitos tipo 2, glaucoma, neurite óptica e até quadros de perda de visão sem causa orgânica aparente, como a ambliopia (já falamos sobre ela no blog, e você pode conferir clicando aqui). Medidas como percepção de profundidade, cor, orientação e movimento espacial são, do mesmo modo, importantes na avaliação em diferentes quadros clínicos... Tão importante quanto o estímulo, pode ser a tarefa solicitada. Havia falado sobre discriminação de padrões de luminância (limiar relativo), mas a simples detecção de um estímulo (limiar absoluto), pode ser importante como em quadros de hanseníase (estímulo tátil) e catarata (estímulo visual). 


Figura 2. Exemplos de estímulos visuais elementares de frequências espaciais (a), radiais (b) e angulares (c), que permitem a avaliação da percepção de alterações de luminância no espaço, importantes na avaliação clínica em diversas patologias. Fonte da imagem: http://www.scielo.br/pdf/prc/v14n3/7844.pdf.

 Como se pode perceber, instrumentos clínicos que possuem base psicofísica são utilizados por áreas além da psicologia: fonoaudiologia, fisioterapia, oftalmologia, optometria, etc. Porém, é preciso ainda superar alguns desafios para alcançar um cenário de maior aplicação de métodos psicofísicos na prática clínica. Primeiro, é preciso construir e validar instrumentos de avaliação clínica para a população brasileira. Segundo, estes instrumentos devem ser construídos e aplicados com alto rigor metodológico como no laboratório, mas  que, em contrapartida, sejam viáveis de serem aplicados na prática clínica, em termos de tempo, recursos e conforto para populações com necessidades especiais. É importante fazer uso de alta tecnologia computacional, que permite, por exemplo, construção de programas adaptativos e acesso à equipamentos altamente acurados. A revolução computacional permite, cada vez mais, a diminuição de custos e o aumento da portabilidade em interfaces amigáveis. Por fim, é preciso incentivar a cultura de utilizar dados comportamentais dos pacientes para complementar a avaliação clínica tradicional baseada em exames de imagem e/ou laboratoriais.

Apesar dos desafios, vários grupos de pesquisa espalhados pelo Brasil têm linhas de investigação que buscam edificar pontes entre a experimentação de laboratório e a prática clínica. Para atravessar de um lado para o outro da ponte leva anos de pesquisas e o envolvimento de muitas pessoas! Mas os resultados têm sido animadores, e estudos nacionais têm mostrado alterações subclínicas em diversas populações de pacientes com distúrbios neurológicos, transtornos mentais ou expostas à condições ambientais especiais (desnutrição e contato com químicos, por exemplo). Ainda existem esforços para caracterização da maturação e desenvolvimento do sistema sensorial em crianças, adultos e idosos. Em 2011 a revista Psicologia USP dedicou um volume à psicofísica clínica e reuniu diversos estudos realizados no país, que você pode conferir clicando aqui. Para quem for mais curioso ou está nesta área, também envio um link de um volume do periódico especializado Vision Research de 2013, dedicado a transição da psicofísica de laboratório à avaliação clínica.

Para fechar o texto, queria ainda abordar outro assunto. Até aqui falei sobre a psicofísica clínica dando exemplos de processos básicos realizados pelo sistema sensorial: estimação de limiares por meio de detecção ou discriminação de formas, luminância, cor. Porém, a psicofísica tem abrangência e potencial para além de uma psicologia sensorial e fisiológica, ao abordar operações cognitivas complexas. Vou dar exemplos da minha própria vida acadêmica. Quando ainda era alunos de graduação me envolvi em um projeto que investigava a relação entre toxoplasmose assintomática e acidentes de carro por meio de um paradigma experimental de atenção (clique aqui para saber mais). Hoje eu tenho uma colega de laboratório que mostrou que indivíduos na síndrome de abstinência do álcool não sofrem a ilusão da máscara côncava (clique aqui saber mais). Sendo assim, ela pode vir a servir como um marcador comportamental para o diagnóstico complementar do quadro. Algo semelhante foi mostrado com pessoas acometidas com esquizofrenia e as obras de Dalí, que postamos no blog (e você pode conferir clicando aqui). Mas nem só de diagnóstico vive a psicofísica clínica. Atualmente sou pesquisador visitante em um laboratório que desenvolveu um programa de treinamento perceptual-cognitivo para informações visuais complexas em movimento, algo chamado de "dinâmica de multidão" (crowd dynamics) e que estamos em contato em nosso dia-a-dia. O treinamento beneficia pessoas idosas de maneira equivalente a jovens adultos, e está sendo utilizado pelas forças especiais americanas e por times profissionais de diversas modalidades esportivas (para saber mais, assista este vídeo).

Por fim, vale também ressaltar que a aplicabilidade da psicofísica não fica restrita à clínica. Vários segmentos da indústria tiram proveito deste campo do conhecimento, como a indústria eletrônica, de games, de cosméticos, de alimentos e do marketing. E cada exemplo merece um texto à parte! Em uma série de textos definimos um ramo clássico da psicologia, a psicofísica, mostramos sua importância história e atual, inserida dentro das neurociências, e sua utilização na clínica, bem como apontamos o seu potencial em diversas outras áreas. A partir disso, é fácil perceber que a psicofísica não tem uma importância meramente história ou secundária em relação a outras áreas dentro da psicologia. Se ela não tem o devido destaque dentro das grades curriculares brasileiras, isto não se deve à falta de relevância.

Rui de Moraes Jr.

Para saber mais:

Costa, M. F. (2010). Psicofísica clínica: Ciência básica e sua aplicação na saúde. Revista Psicologia e Saúde, 2(1), 50-55.

Costa, M. F. (2011). Psicofísica clínica. Psicologia USP, 22(1), 15-44.

sábado, 1 de março de 2014

Psicofísica Moderna III - Escalas Psicofísicas (parte III)



Para finalizar o tópico sobre escalas psicofísicas, resolvi dedicar um texto a um erro muito comum ao se traçar hipóteses quantitativas: tomar medidas ordinais como se fossem intervalares. Em um texto anterior foram definidos os níveis de medidas. De maneira resumida, uma escala ordinal estabelece uma relação de ordem entre os eventos de determinado atributo que se deseja mensurar do mesmo modo que uma escala intervalar; porém, por meio desta última conhecemos a diferença de magnitude entre os eventos, que se mantém constante em toda a escala.     

O que acontece na psicologia é que a natureza de variáveis como inteligência, resiliência, autoconceito e traços de personalidade compõe diversos componentes difíceis de serem observados e avaliados, ainda mais em intervalos de medidas iguais. Este fato levanta uma série de problemas à tentativa de mensurações mais completas acerta de fenômenos comportamentais e cognitivos.

Somado a isto, a riqueza de análise devido a pouca perda de informação e o número de axiomas preservados faz com que muitas escalas ordinais em psicologia sejam tratadas como intervalares. Isto se torna claro ao vermos a quantidade de instrumentos que se utilizam de médias aritméticas ou somatórios de itens ou sub-escalas. Alguns teóricos defendem que ao tomarmos a pontuação total de itens claramente ordinais, estes se aproximam de escalas intervalares. Há aqueles que ainda vão além ao afirmarem que uma escala é apenas uma convenção e é boa na medida em que funciona bem na prática.

Apesar da estatística “ilegal”, Stevens chegou a afirmar que resultados frutuosos corroboraram de maneira pragmática esta prática, mas alertou que é um erro calcular média e desvios padrão de uma escala ordinal, na medida em que os intervalos sucessivos da escala são desiguais. Se tal prática for levada a diante é necessário, pelo menos, que extensa investigação sobre as propriedades de medida dos dados seja realizada, bem como sobre a qualidade da operação experimental que permite a mensuração do atributo em questão. Mesmo assim, críticas conceituais severas vêm sendo aplicadas a esta ampla prática por grandes nomes da Psicologia. Os teóricos mais fundamentalistas afirmam que o tratamento de atributos ordinais como se tivessem estrutura intervalar pode levar a conclusões inválidas.

Por vezes, amparados pela prática, é comum pensarmos que a pontuação de algum construto teórico em alguns testes são medidas intervalares. Mas isto não passa de uma especulação, mesmo que coerente. Como cientistas, não somos livres para reivindicar essa crença como um resultado científico na ausência de provas. No entanto, isto é precisamente o que muitos psicólogos fazem quando eles apresentam seus testes para as comunidades científica e leiga, como instrumentos capazes de medição de escala de intervalo. Esta crítica foi feita por Joel Michell, e para se aprofundar no assunto basta acessar as referências de sua autoria ao final do texto. Deste modo, é melhor adotar uma postura de rigor matemático perante toda medida intervalar no qual não as sabe seu real valor preditivo, frente ao atributo que esta pretende avaliar.

Quer baixar o texto? Clique aqui.


Rui de Moraes Jr.

Para saber mais:
Da Silva, J. A. Ribeiro-Filho, N. P. (2006). Avaliação e mensuração da dor: pesquisa, teoria e prática. Ribeirão Preto: FUNPEC-Editora.

Michell,  J.  (1997).  Quantitative  science  and  the  definition  of  measurement  in psychology.  British  Journal  of  Psychology,  88,  355-  383.

Michell, J. (2002). Steven’s theory of scale of measurement and its place on modern psychology. Australian Journal of Psychology, 54(2), 103.

Nunnally,  J.C.,  &  Bernstein,  I.H.  (1994).  Psychometric  Theory  (3rd  ed.).  New  York, NY: McGraw- Hill Book Company.