No
texto O
que é Psicofísica?, nós apresentamos esta área do conhecimento que busca
relações entre a realidade do mundo físico e a experiência psicológica
organizada por nossos processos mentais. Em um texto seguinte, Psicofísica
no século XXI, fomos adiante e reafirmamos o papel da subespecialidade mais
antiga da psicologia (inclusive anterior a ela) no cenário atual, em que as neurociências
utilizam modernas técnicas para acessar o funcionamento cerebral em tempo real.
Neste texto, para além do campo epistemológico, vamos falar da atualidade e
importância da psicofísica em sua aplicabilidade clínica.
A psicofísica clássica criou métodos robustos
para estudar os processos sensoriais por meio de rigoroso controle experimental
e de funções matemáticas, e com isso estabeleceu correlações entre a atividade
cerebral e a perceptual. A partir disso, é possível inferir valiosas
informações sobre o processamento mental, o desenvolvimento e funcionamento do
sistema nervoso normal e como lesões e desordens patológicas o afetam. Isso
permite, em muitos casos, avaliação, diagnóstico, monitoramento e reabilitação
de diversos quadros clínicos.
Você
mesmo provavelmente deve ter realizado alguns testes fundamentados nos
pressupostos psicofísicos sem se dar conta, como a audiometria
e o teste
de Snellen de acuidade visual (aquele tradicional "exame de vista";
Figura 1) por exemplo. Testes como estes medem a quantidade de energia que é necessária
para um órgão sensorial detectar ou identificar um estímulo. Esta energia pode
ser mecânica, como o movimento do ar no caso da audiometria, eletromagnética,
como no caso das ondas luminosas no teste de visão, ou de outra modalidade, como
química e térmica. Pelo fato destas medidas de limiares serem muito acuradas,
alterações podem refletir danos teciduais nos órgãos do sentido medido. E mais,
estes testes psicofísicos clínicos geralmente são bons instrumentos para
diagnóstico precoce, pois acusam alterações de doenças sistêmicas e do sistema
nervoso antes que alterações anatômicas e fisiológicas possam ser identificadas.
E os mesmos instrumentos podem ser utilizados para monitorar a evolução do
quadro e o efeito do tratamento porque, em geral, são de baixo custo, não
invasivos e de fácil aplicação.
Figura 1. Exemplos de
testes clínicos amplamente utilizados e com bases na psicofísica. Na imagem
superior (a) você vê o ambiente de testagem da audiometria, e na imagem
inferior (b) está a tabela de Snellen para avaliação da acuidade visual. Fonte
das imagens: http://assessmentandinterventiongroup8.wordpress.com/vision/acuity-assessment/ e http://www.audiovozsp.com.br/audiometria.html.
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Outros
exemplos de instrumentos e técnicas utilizados na clínica são as curvas de
sensibilidade audiométrica da fala, os diferentes exames de acuidade visual, a função
de sensibilidade ao
contraste, avaliação da visão de cores e testes neurológicos para mensurar
a dor. Medidas da percepção são feitas em diversos estímulos. Discriminação de variações
de luminância ao longo do espaço, por exemplo, permite uma avaliação da
integridade de diferentes células/vias do sistema visual (Figura 2). A partir
disso, vários quadros podem ser diagnosticados e monitorados: diabetes
mellitos tipo 2, glaucoma,
neurite óptica e até quadros de
perda de visão sem causa orgânica aparente, como a ambliopia (já falamos sobre
ela no blog, e você pode conferir clicando aqui). Medidas
como percepção de profundidade, cor, orientação e movimento espacial são, do
mesmo modo, importantes na avaliação em diferentes quadros clínicos... Tão
importante quanto o estímulo, pode ser a tarefa solicitada. Havia falado sobre
discriminação de padrões de luminância (limiar relativo), mas a simples
detecção de um estímulo (limiar absoluto), pode ser importante como em quadros
de hanseníase (estímulo tátil) e catarata (estímulo visual).
Figura 2. Exemplos de
estímulos visuais elementares de frequências espaciais (a), radiais (b) e
angulares (c), que permitem a avaliação da percepção de alterações de luminância
no espaço, importantes na avaliação clínica em diversas patologias. Fonte da
imagem: http://www.scielo.br/pdf/prc/v14n3/7844.pdf.
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Como
se pode perceber, instrumentos clínicos que possuem base psicofísica são
utilizados por áreas além da psicologia: fonoaudiologia, fisioterapia, oftalmologia,
optometria,
etc. Porém, é preciso ainda superar alguns desafios para alcançar um cenário de
maior aplicação de métodos psicofísicos na prática clínica. Primeiro, é preciso
construir e validar instrumentos de avaliação clínica para a população
brasileira. Segundo, estes instrumentos devem ser construídos e aplicados com
alto rigor metodológico como no laboratório, mas que, em contrapartida, sejam viáveis de serem
aplicados na prática clínica, em termos de tempo, recursos e conforto para
populações com necessidades especiais. É importante fazer uso de alta
tecnologia computacional, que permite, por exemplo, construção de programas adaptativos e acesso à equipamentos altamente acurados. A revolução computacional permite, cada vez mais, a
diminuição de custos e o aumento da portabilidade em interfaces amigáveis. Por
fim, é preciso incentivar a cultura de utilizar dados comportamentais dos
pacientes para complementar a avaliação clínica tradicional baseada em exames
de imagem e/ou laboratoriais.
Apesar
dos desafios, vários grupos de pesquisa espalhados pelo Brasil têm linhas de
investigação que buscam edificar pontes entre a experimentação de laboratório e
a prática clínica. Para atravessar de um lado para o outro da ponte leva anos
de pesquisas e o envolvimento de muitas pessoas! Mas os resultados têm sido
animadores, e estudos nacionais têm mostrado alterações subclínicas em diversas
populações de pacientes com distúrbios neurológicos, transtornos mentais ou
expostas à condições ambientais especiais (desnutrição e contato com químicos,
por exemplo). Ainda existem esforços para caracterização da maturação e
desenvolvimento do sistema sensorial em crianças, adultos e idosos. Em 2011 a
revista Psicologia USP dedicou um volume à psicofísica clínica e reuniu
diversos estudos realizados no país, que você pode conferir clicando aqui. Para quem for mais curioso ou está nesta área, também envio um link de um volume do periódico especializado Vision Research de 2013, dedicado a transição da psicofísica de laboratório à avaliação clínica.
Para
fechar o texto, queria ainda abordar outro assunto. Até aqui falei sobre a
psicofísica clínica dando exemplos de processos básicos realizados pelo sistema
sensorial: estimação de limiares por meio de detecção ou discriminação de
formas, luminância, cor. Porém, a psicofísica tem abrangência e potencial para
além de uma psicologia sensorial e fisiológica, ao abordar operações cognitivas
complexas. Vou dar exemplos da minha própria vida acadêmica. Quando ainda era
alunos de graduação me envolvi em um projeto que investigava a relação entre toxoplasmose
assintomática e acidentes de carro por meio de um paradigma experimental de
atenção (clique aqui
para saber mais). Hoje eu tenho uma colega de laboratório que mostrou que
indivíduos na síndrome de abstinência do álcool não sofrem a ilusão da máscara côncava
(clique aqui saber
mais). Sendo assim, ela pode vir a servir como um marcador comportamental para
o diagnóstico complementar do quadro. Algo semelhante foi mostrado com pessoas
acometidas com esquizofrenia e as obras de Dalí, que postamos no blog (e você
pode conferir clicando aqui).
Mas nem só de diagnóstico vive a psicofísica clínica. Atualmente sou
pesquisador visitante em um laboratório que desenvolveu um programa de treinamento
perceptual-cognitivo para informações visuais complexas em movimento, algo
chamado de "dinâmica de multidão" (crowd dynamics) e que estamos em contato em nosso dia-a-dia. O
treinamento beneficia pessoas idosas de maneira equivalente a jovens adultos, e
está sendo utilizado pelas forças especiais americanas e por times
profissionais de diversas modalidades esportivas (para saber mais, assista este
vídeo).
Por
fim, vale também ressaltar que a aplicabilidade da psicofísica não fica
restrita à clínica. Vários segmentos da indústria tiram proveito deste campo do
conhecimento, como a indústria eletrônica, de games, de cosméticos, de alimentos e do marketing. E cada exemplo merece um texto à parte! Em uma série de
textos definimos um ramo clássico da psicologia, a psicofísica, mostramos sua
importância história e atual, inserida dentro das neurociências, e sua
utilização na clínica, bem como apontamos o seu potencial em diversas outras
áreas. A partir disso, é fácil perceber que a psicofísica não tem uma
importância meramente história ou secundária em relação a outras áreas dentro
da psicologia. Se ela não tem o devido destaque dentro das grades curriculares
brasileiras, isto não se deve à falta de relevância.
Rui de Moraes Jr.
Para saber mais:
Costa, M. F. (2010). Psicofísica clínica: Ciência básica e sua aplicação na saúde. Revista Psicologia e Saúde, 2(1), 50-55.
Costa, M. F. (2011). Psicofísica clínica. Psicologia USP, 22(1), 15-44.