No texto Assimetria
cerebral dissemos que o hemisfério esquerdo (HE) era
considerado dominante devido à imediata conseqüência que
lesões nele causavam no comportamento observado. Isto não ocorria com o hemisfério
direito (HD), o que o fez ser considerado inferior.
Agora iremos abordar as primeiras pesquisas em assimetria
cerebral, às vezes também chamada de lateralidade ou especialização hemisférica.
Conforme já citamos, os primeiros relatos de diferenças
hemisféricas são antigos, por exemplo, John Hughlings
Jackson (1835-1911) apontou que o HD possuía papel fundamental na
percepção espacial (1874). Apesar deste relato longínquo, o assunto
despertou maior interesse a partir da década de 1950, com Roger Sperry e seus
colaboradores, como Ronald E. Myers, A. M. Schrier e Michael Gazzaniga.
A seguir apresentaremos como essa idéia de
diferença hemisférica foi explorada e estudada.
Figura 1. À esquerda vemos Roger Sperry (1913-1994),
pesquisador americano, agraciado com o Nobel de Fisiologia ou Medicina (1981)
por suas pesquisas sobre separação do corpo caloso e identificações das funções
hemisféricas. À direita vemos Michael Gazzaniga (1939-),
um dos grandes responsáveis pelo nosso conhecimento sobre esta área.
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Como começaram estes estudos?
Em um de seus estudos seminais, Sperry e sua equipe treinaram
gatos para discriminar estímulos visuais (formas geométricas) apresentados numa
tela dentro de uma caixa. Os animais davam as repostas pressionando pedais com
suas patas (ver Figura 2). Primeiro um grupo normal de animais foi treinado e
estes aprenderam facilmente a tarefa proposta.
Para testar se a estrutura chamada quiasma óptico (ver Figura
3) estava envolvida na transferência de informações entre os olhos, os
pesquisadores separaram cirurgicamente esta estrutura em outro grupo de
animais. Após a cirurgia, os animais foram treinados com um dos olhos vendados.
Terminada a fase de aprendizagem, os pesquisadores venderam o olho que aprendeu
a tarefa, liberando o que permaneceu ocluído. Com este olho, o gato
comportou-se adequadamente na tarefa, cometendo pouquíssimos erros, indicando
que houve transferência de aprendizado entre os olhos. Esta transferência
ocorreu por alguma outra estrutura cerebral. Então nossos sagazes pesquisadores
não pararam por aqui, pois eles ainda tinham algumas cartas na manga para
descobrir como a informação poderia ser transferida.
Figura 3. Quiasma óptico humano. Você pode observar que informações que chegam à metade temporal da retina – perto das orelhas, são transmitidas para o mesmo hemisfério (ipsilateral). Enquanto isso, informações que chegam à metade nasal vão para hemisférios opostos (contralateral). Os pesquisadores separavam esta estrutura em destaque, só que em gatos, impedindo que informações se cruzassem. Isto garantia que estímulos apresentados em cada metade do campo visual fossem projetados ao hemisfério oposto. Fonte: Manual Merck |
Nesta época ainda não era tão claro o papel do corpo caloso (Figura 4) nas funções cerebrais. Porém a funcionalidade do quiasma já era conhecida anatomicamente (Figura 3). Para testar se o corpo caloso poderia estar envolvido na transferência destas informações, foi realizado o seguinte procedimento. Primeiro foi separado apenas o corpo caloso de alguns animais. Como esperado, a informação foi transferida pelo quiasma óptico, que permaneceu intacto. Depois veio a grande sacada de nossos ilustres pesquisadores. Eles separaram agora tanto o corpo caloso quanto o quiasma óptico. Como conseqüência não houve transferência de aprendizado. Com base nisto eles puderam concluir que o corpo caloso era a estrutura envolvida na transferência de informações entre os hemisférios cerebrais.
Figura 4. Corpo caloso em visão frontal e
lateral. Essa estrutura é responsável pela comunicação entre nossos hemisférios
cerebrais. Fonte da imagem: Wikipedia
A partir destes resultados foi possível entender melhor o
processamento visual das informações no nosso cérebro, em especial entre os
hemisférios. Após isto, Sperry, Gazzaniga e outros colaboradores estudaram
pessoas com uma condição peculiar. Elas foram submetidas a uma cirurgia de
comissurotomia (separação do corpo caloso). Antes que pensem mal dos nossos
pesquisadores, isto não foi feito para fins científicos! Estas cirurgias foram
realizadas para o tratamento de certo tipo de epilepsia intratável com remédios¹.
Então com base nos resultados obtidos com animais, eles poderiam
agora estudar o funcionamento em separado dos hemisférios cerebrais em humanos.
Um elegante estudo conduzido por Sperry e Gazzaniga (1967) nos
permite perceber as nuances da colaboração hemisférica nas tarefas do dia a
dia. Por exemplo, foram apresentados vários objetos para um participante, um
homem recém-comissurotomizado (ver nota 1). Foi pedido a ele que nomeasse estes
objetos. Ele conseguia nomear normalmente todos os objetos. Em outra sessão, a
tarefa era a mesma, porém o participante não podia ver os objetos, apenas
explorá-los com o tato. Com a mão direita (comandada pelo HE) ele realizava a
tarefa normalmente. Entretanto, com a mão esquerda (HD) ele não conseguia
nomeá-los. Mas se os objetos lhe fossem mostrados, ele conseguia apontar
qual objeto foi manuseado ².
Em geral as atividades diárias deste paciente não foram prejudicadas.
Entretanto, ao criar engenhosos testes, os pesquisadores conseguiram por a
prova a especificidade de cada hemisfério.
Resumindo, esta e outras pesquisas concluíram que os hemisférios
possuem, grosso modo, as especificidades apontadas na tabela abaixo:
Mas só é possível estudar a lateralidade em populações clínicas?
Não. Doreen Kimura (1993-), em 1961, fez um estudo que ampliou as
possibilidades para pesquisas em assimetria. Ela utilizou o método de
escuta-dicótica (cada ouvido recebe uma informação diferente) em pessoas
normais (ou hígidas). Encontrou uma vantagem do HD no processamento da
informação lingüística. Mais tarde estes resultados foram refutados por
problemas experimentais. Porém, o mais importante de sua pesquisa foi
incrementar um método válido para se estudar a lateralidade em pessoas
neurologicamente normais, ou seja, no cérebro intacto e funcional.
Além do método de escuta-dicótica, existem diversos outros métodos
e técnicas para se estudar a assimetria em populações não-clínicas. Agora não
cabe detalharmos cada um. Faremos isto de acordo com cada pesquisa apresentada.
Bem, por enquanto era apenas isto que queríamos apresentar a vocês.
Notas:
¹ Na metade do século XX, William Van Wagenen, realizou as
primeiras cirurgias de separação do corpo caloso (comissurotomia) para o alívio
dos sintomas de epilepsia intratável farmacologicamente. Isto impediria o
excesso de descargas elétricas entre os hemisférios através do corpo caloso.
Porém este procedimento foi abandonado porque seus resultados ficaram aquém do
esperado. Com base nos estudos de Sperry, Joseph Bogen e Philip Vogel retomaram
a comissurotomia. A hipótese foi de que possivelmente não houve separação total
do corpo caloso. Então fizeram a separação total desta estrutura em uma série de
pacientes com o mesmo tipo de problema, que ficaram conhecidos como a série
da Califórnia. A partir disto, Roger Sperry e seu aluno Michael Gazzaniga
realizaram diversos estudos com estes pacientes comissurotomizados (ou split-brains).
Estas cirurgias são realizadas até hoje, sendo que há também a retirada de um
dos hemisférios em alguns casos.
² Alguns pacientes logo após a cirurgia relataram alguns
comportamentos bizarros. Por exemplo, um deles disse que certa vez ao tentar
pegar uma camisa no armário, cada mão pegou uma. A mão esquerda pegou um tipo e
a direita outro. Isso ocorreu sem o controle consciente do paciente. Este tipo
de comportamento não foi relatado por outros pacientes.
Bruno Marinho de Sousa
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