A Neurociência vai acabar com a
Psicofísica?
A Psicofísica é o estudo quantitativo
da relação entre a estimulação física e a resposta sensorial. Esta informação
não é novidade para aqueles que já acompanham este blog. Quem nos visita pela
primeira vez, pode saber mais sobre a origem e a importância desta disciplina
para a Psicologia Experimental clicando aqui. Recentemente, uma série de textos abordou o
que chamamos de Psicofísica Moderna. A ciência não para, portanto nosso
objetivo foi expor o que foi produzido neste campo após os trabalhos iniciais
de Ernst Heinrich Weber e Gustav Theodor Fechner. Estes
textos podem ser acessados aqui.
Contudo, sempre ouço uma pergunta mais
ou menos assim: pra que serve a Psicofísica se hoje podemos ver como o cérebro
funciona in vivo? A década de 1990
foi considerada a década do cérebro e, desde então, observamos o advento e
desenvolvimento de inúmeras técnicas de investigação do funcionamento cerebral
(fMRI, PET, EEG, dentre
outros). O termo “Neurociência” saiu da academia e tornou-se recorrente na
mídia e na conversa das pessoas. Será que o desenvolvimento da Neurociência resultará
no ostracismo definitivo da Psicofísica?
Antes de responder à pergunta, gostaria
de destacar que recentemente muitos pesquisadores lançaram um alerta: é preciso
cuidado ao interpretar os resultados obtidos através de técnicas de imageamento
cerebral. Muitas vezes, esta interpretação é equivocada ou incorre-se em uma
simplificação exagerada. Uma boa introdução a este debate pode ser encontrada
nesta palestra.
Nos últimos anos, a Neurociência
permitiu um incrível salto em nossa compreensão sobre o cérebro. Isso é
inegável. No entanto, não significa que a Psicofísica seja inútil e possa ser
desconsiderada, tornando-se uma disciplina cujo interesse seja apenas
histórico. Estas áreas do conhecimento não são excludentes. Você não tem que
escolher uma e defendê-la. Ciência não é partido político ou religião. A
Psicofísica dá importantes contribuições à Neurociência e se beneficia do
conhecimento gerado por esta. O oposto também é verdadeiro. Provavelmente, você
está pensando: mas afinal, qual é a relação entre Psicofísica e Neurociência?
Para entender esta
relação, é preciso voltar nossa atenção ao projeto inicial de Fechner, o qual
se fundamenta em uma discordância com o dualismo cartesiano. Ele defendia que o
corpo e a mente eram diferentes reflexos de uma mesma realidade. Para provar esta
proposição, um caminho era demonstrar que os processos cerebrais refletiam
diretamente em processos mentais. Não é o que a Neurociência também tenta
demonstrar? O objetivo de Fechner, portanto, era investigar a relação entre as
sensações e a atividade neural subjacente a elas, ao que ele se referia como
Psicofísica Interna (inner psychophysics,
em inglês). Pode-se concluir que a proposta original de Fechner antecipa os
objetivos da Neurociência.
Fechner conseguiu levar
adiante esta ideia? A resposta é não. Para entender isso, vamos colocar um
pouco de perspectiva histórica. Na época de Fechner não havia métodos de
investigação fisiológica que permitissem o registro objetivo das funções
neurais. É preciso lembrar que 50 anos depois, ainda não se sabia como o sistema
nervoso estava organizado. Havia duas hipóteses prevalentes: a doutrina do
neurônio e as teorias reticulares. Este debate alcançou inclusive a entrega do
Prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina em 1906, que foi dividido entre o médico
espanhol Santiago Ramón y Cajal (1852-1934) e o médico italiano Camillo Golgi (1843-1926), o mesmo que teve seu nome utilizado em uma estrutura celular, o
complexo de Golgi, que aprendemos nas aulas de ciências do ensino fundamental. Acesse aqui para conhecer melhor esta
história.
Figura
1. O médico italiano Camillo Golgi (1843-1826), que desenvolveu um importante
método de coloração das células nervosas (à esquerda) e o médico espanhol
Santiago Ramón y Cajal (1852-1934), que realizou estudos histológicos
fundamentais para nossa compreensão do sistema nervoso. Fonte: http://www.nobelprize.org/nobel_prizes/medicine/laureates/1906/
O que Fechner podia fazer
para encontrar evidências em favor de sua tese? Sua saída foi investigar a relação
entre as sensações e a variação e as propriedades físicas dos estímulos, o que
é denominado Psicofísica Externa (outer
psychophysics, em inglês). Dessa maneira, a solução foi basear-se na
íntima relação entre a experiência perceptual e o estímulo físico, tomando-se
esse como sistema de referência. As características dos estímulos físicos são
cuidadosa e sistematicamente manipuladas e os observadores indicam sua
percepção destes estímulos e suas alterações.
Os métodos psicofísicos desenvolvidos por Fechner baseiam-se nesta
ideia. Você pode obter mais detalhes sobre estes métodos no texto PsicofísicaClássica III – Métodos Clássicos.
Para entender melhor a
que se refere a Psicofísica Interna e a Psicofísica Externa, olhe o diagrama abaixo.
Figura 2. Adaptação de Ehrenstein & Ehrenstein (1999).
Note no diagrama, que a
Psicofísica Interna vislumbra a relação entre o plano psíquico e o plano
fisiológico. Entretanto, em função da carência de tecnologia apropriada em sua
época, Fechner propôs que a Psicofísica Interna poderia ser inferida a partir da
relação entre o plano físico e o plano psíquico (Psicofísica Externa).
Ao longo do século XX, o
desenvolvimento das técnicas não-invasivas para o registro da atividade
cerebral permitiu o estudo dos processos cerebrais envolvidos na percepção. Ou
seja, estabeleceu-se a ponte entre o plano físico e o plano fisiológico, a que
chamamos de Neurofisiologia. Estas técnicas não vieram substituir os métodos
psicofísicos. Pelo contrário. Iniciou-se uma tendência, ainda em curso, de
valer-se de uma abordagem complementar. Isto é, os resultados provenientes das
modernas técnicas somam-se aos achados da psicofísica, revelando os correlatos
neurais e psicofísicos da percepção. A Psicofísica confirma e complementa os
achados da neurofisiologia. Pode-se concluir que a Neurociência emerge da
reciprocidade das técnicas e do conhecimento que temos do plano físico, do
plano fisiológico e do plano psíquico.
Pode-se afirmar,
portanto, que o projeto inicial de Fechner pode agora se tornar realidade. Seu
conceito de Psicofísica Interna não depende única e exclusivamente dos achados
provenientes da metodologia da Psicofísica Externa. Ou seja, os resultados
subjetivos desta podem ser correlacionados diretamente com informações
disponíveis sobre o funcionamento cerebral.
Na convergência entre
Neurociência e Psicofísica, os métodos psicofísicos podem auxiliar no exame da
capacidade perceptiva em pacientes com lesão cerebral, na escolha mais adequada
dos estímulos para explorar um mecanismo ou área cerebral e para determinar a
relevância perceptiva (comportamental) de dado mecanismo ou área cerebral.
Pode-se concluir que a Psicofísica reafirma sua importância e estabelece seu
importante papel também no século XXI.
Quer baixar o texto? Clique aqui.
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Leonardo
Gomes Bernardino
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Ehrenstein,
W. H., & Ehrenstein, A. (1999). Psychophysical methods. In: U. Windhorst
and H. Johansson, Editors, Modern
Techniques in Neuroscience Research, Springer: Berlin, 1211-1241.
Gescheider,
G. (1997). Psychophysics: the fundamentals (3rd ed.). Lawrence
Erlbaum Associates.
Schiffman, H. R. (2005) Psicofísica. In: H. R.
Schiffman, Sensação e Percepção (pp. 17-33). Rio
de Janeiro: LTC.
Parabéns pelo o blog, adorei... muito bom mesmo!
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